Murmúrios de Primavera

É tempo, pois, de Primavera, que é sempre Tempo de Esperança e Renovação como na Natureza sábia, que se adapta, resiste e sobrevive! O que precisamos: adaptar para sobreviver. Resiliência, como agora se usa dizer!

15 de Março de 2021: A memória é maldição ou bênção. Na procura de título para este artigo, em dia de sol, prenúncio da Primavera, murmúrios, como se fosse uma música distante, vinha ao pensamento. Wikipédia e YouTube, ferramentas indispensáveis nos dias de hoje, salvaram-me. Afinal era a curta sonata de Christian Sinding (1856-1941), compositor norueguês, ofuscado pelo brilho e popularidade de Edward Grieg e pela vergonha de ter aderido ao partido nazi norueguês oito semanas antes da sua morte em 1941. Mas a sonata é bela, suave, simples, evocadora da tranquilidade dos fiordes, um sussurro de Primavera que apazigua a memória e os seus mistérios... 

Será que chegou o tempo da tranquilidade ambicionada, regresso progressivo à normalidade possível? Ou ainda sobressalto e angústia, como parece estar a ocorrer por alguns países europeus? Que pensar?

As lições de um ano de covid-19 ensinaram-nos três coisas: i) a importância da contenção através das medidas sanitárias conhecidas e de confinamento populacional – o célebre martelo para abater a onda pandémica; ii) testagem tão generalizada quanto exequível, para avaliar a expansão da contaminação e rastreio dos contactos, a qual requer inquéritos epidemiológicos imediatos para isolar portadores e doentes; e iii) vacinação maciça e rápida quanto a capacidade de produção e distribuição das vacinas o permitir.

De facto, não foi demonstrado de forma científica inquestionável – e a Ciência tem regras exigentes que não podem ser subvalorizadas – a existência de tratamento etiológico, específico e eficaz. Neste combate, não há outras alternativas, senão fazer bem o que deve ser feito, no respeito pelo método e a verdade da Ciência.

Vejamos alguns factos:

1. Do Martelo à Vacinação: a resposta dos diferentes países foi diversa, determinada pela ​organização dos seus serviços de Saúde Pública e de Medicina Clínica. Mais que a discussão de modelos públicos, privados ou mistos, foram decisivos meios existentes, recursos, organização e capacidade de apoio às terríveis consequências sociais e económicas das decisões tomadas. Isso, e a eficácia da comunicação pública. Assegurar mobilização das populações para o cumprimento das medidas necessárias. Coerência, rigor na informação, apesar da incerteza, simplicidade e profissionalismo são requisitos necessários do sucesso. Melhor que o cansaço da presença obsessiva de políticos nos media e as incoerências no discurso. Saúdo a nomeação duma task force para a comunicação, necessidade que apontei no começo de tudo, e confio na sua competência, profissionalismo e isenção. Mais vale tarde que nunca e vem numa altura crucial.

O problema da comunicação pública em tempo de crise é conhecido. A História registou os vencedores cuja Arte de comunicar e mobilizar foi decisiva. Churchill e De Gaulle, nas suas idiossincrasias e em momentos limite, foram exemplo que persiste na memória colectiva. Estaline, também, não obstante a brutalidade e a indiferença ao sacrifício humano, que os historiadores revelaram. O ano que passou implicou outras dimensões e novos problemas. A capacidade de uso da informação individual como instrumento do exercício do Poder e controle das populações, o risco de um caminho acelerado para um totalitarismo insuspeitado e insidioso que a revolução digital apenas torna possível – é instrumento e não pauta de valores. Essa é a nossa responsabilidade individual, de cidadãos, de avaliação crítica e monitorização da decisão política.

Foto
REUTERS/ALKIS KONSTANTINIDIS

Muito se tem escrito, ensaios, livros e artigos na imprensa internacional e nacional também, cotejando até diferenças a Oriente e a Ocidente. Entre aceitação mais passiva dessa intrusão digital na nossa vida privada e decisão individual e alguma insubmissão e até revolta nas sociedades mais democráticas e abertas, na Europa e América. Em tudo na vida há um contraponto, como assinalou Aldous Huxley na sua obra Point and Counterpoint. E, no século XXI, manipulação da informação, desinformação deliberada e politicamente motivada, ignorância irredutível promovida nas redes sociais sem controle, só exacerbaram o perigo. Ficarão na história – com h minúsculo – lideranças e comportamentos inaceitáveis, passadas ou que teimam em continuar. E outros que, através da ignorância e do medo, encontram o método e o terreno fértil para, na irresponsabilidade, suscitar instabilidade e entropia social. Tudo isto é conhecido, tudo isto é triste, tudo isto será Fado (como destino!), mas tudo isso não deverá conduzir ao controle rígido e autocrático da Informação que a nossa sociedade não poderá tolerar. É um risco e uma aposta na inteligência e na cidadania. Estou certo de que, desta crise, sairemos mais fortes, mais conhecedores e mais capazes no exercício dos deveres e direitos como cidadãos informados, empenhados e exigentes. E a exigência perante a Política é a marca da Cidadania. E esse Tempo está aí, já chegou!

Como estamos? Entre o cansaço do confinamento e o entusiasmo do recomeço, mais uma vez parecemos cair na volúpia dos extremos, entre desânimo e euforia. Organizar a informação e aceitar regras não é intrusão na Liberdade. Deveria ter sido obrigatório que qualquer entrevistado na manhã do último domingo solarengo devesse estar de máscara – condição sine qua non para que a sua mensagem, interessante e útil, pudesse passar. Era expressão duma cumplicidade e aliança tácitas, assumida pela necessidade de coerência duma mensagem que é um bem público: não poderá haver relaxamento no cumprimento das regras sanitárias, do uso da máscara ao distanciamento físico e higiene.

2. Vacinação, testagem e rastreio epidemiológico são agora as nossas armas. Preocupam-me duas realidades. A testagem maciça e generalizada é uma necessidade para monitorizar a expansão da pandemia, mas não é panaceia. Requer técnica na sua execução, sem a qual os resultados poderão ser contraproducentes. Não é, como foi mencionado, simples como um teste de gravidez comprado na farmácia ou drugstore. Como não ficou claro qual o uso da informação obtida. Há imperativos de Saúde Pública e a notificação obrigatória em caso de positividade é um dever social, e não violação da privacidade de cada um. Porque o seu objectivo é desencadear identificação e rastreio dos potenciais contactos e assim manter a contenção da epidemia.

O sistema foi testado? Estão previstos os buracos do queijo ou da malha por onde poderão passar indiferença, oportunismo ou fraude? Soube-se que falsificação de resultados de testes não é fenómeno isolado na Europa... e há ferramentas digitais que podem assegurar notificação rápida, permanente e com segurança. Estão no terreno? Ouvi com atenção a intervenção de autarcas que, e muito bem, sugeriam partilha da responsabilidade na organização e funcionamento de toda esta máquina complexa. A descentralização, evitando acumulações de pessoas e reduzindo deslocações, é importante. Serve o Estado e a Comunidade. E a tecnologia pode assegurar unidade na acção e rapidez no processamento da informação. E depois o rastreamento, chave do sucesso sem o qual o exercício pouco impacto terá. Volto ao meu apelo para que se mobilizem todos os recursos humanos disponíveis, incluindo os estudantes finalistas de Medicina e Enfermagem, cuja colaboração pode ser inestimável... e vacinados todos os que estiverem na acção directa com a população.

Há problemas na produção e distribuição das vacinas. É uma logística complicada, multipolar e intercontinental, e pela sua tessitura passam, inesperadamente (?), imperativos nacionalistas e de influência política e estratégica. Inevitáveis, porventura, mas contornáveis pela inteligência, decisão e respeito pelos valores fundamentais. Há indiscutíveis sucessos, potenciados pela capacidade financeira, tecnológica e organizacional – o mundo é desigual! –,​ mas também pela determinação política, visão prospectiva e organização da informação médica. A análise mais profunda ultrapassa o âmbito deste texto. Não sei se as críticas à Comissão Europeia, duras e com a tradicional sobranceria –​ stiff upperlip –, das rivalidades nacionais ao voluntarismo excessivo versus subtileza negocial, serão apropriadas. Portugal pode fazer ouvir a sua voz e deve fazê-lo. Ocupa a Presidência da União.

Haverá sempre intercorrências em processos desta dimensão em Saúde Pública como os casos de tromboses vasculares ocorridos que suscitaram inquietação e temor. Por dever de ofício e área de intervenção profissional, segui, ouvi, analisei quanto possível e procurei tranquilizar. A Sociedade Internacional de Trombose e Hemostase, uma das mais relevantes nesta área com sede nos EUA, veio confirmar a segurança e defender a continuidade da vacinação, reforçando recomendações adicionais e uma recomendação muito clara e linear. É a expressão realista do conflito potencial entre duas realidades que abordei em artigo anterior: a Medicina Individual personalizada, paradigma da nossa prática clínica, e a exigência de Saúde Pública em época de pandemia grave e mortal. Mas também a partilha da informação clínica individual, de cada vacinado, no que é conhecido medicamente. E os formulários que se preenchem são adequados e permitem mencionar situações especiais. Documentar, registar e analisar é fundamental, mas os números mencionados são, na dimensão científica, sem significado. Sem desvalorizar a dimensão individual, mais ou menos grave, e infelizmente de mortalidade. É preciso não esquecer que todo este processo se tem concentrado na população mais idosa, com doenças intercorrentes e que a vacina se destina apenas a prevenir uma infecção viral, potencialmente mais grave nesse mesmo grupo de pessoas. A avaliação do regulador europeu, da OMS e das entidades científicas credíveis deve ser tão rápida quanto possível, para a tranquilidade da população e a continuidade indispensável da vacinação.

A vacinação global, generalizada e rápida à população adulta é uma necessidade prioritária de Saúde. Será a única forma de reduzir estádios mais graves da doença, como os dados obtidos em Israel, na Escócia e Inglaterra e EUA confirmam. Como, também, prevenir emergência de novas variantes de gravidade imprevisível. E uma palavra de saudação e congratulação pela decisão da Ordem dos Médicos e do seu bastonário de pugnar pela vacinação, ultrapassando dicotomia inaceitável que a impetuosidade ideológica, que ainda irrompe, parecia condenar. E é fundamental que aconteça também nas Escolas, públicas, privadas, mistas, para os professores e funcionários, para que o regresso tão desejado às aulas não venha comprometer um combate que precisamos vencer.

Área por excelência da Política, do balanço entre risco e benefício, da decisão difícil e da coragem irrecusável que define a liderança. Como, aliás, acentuava Harari no seu notável artigo publicado no Financial Times e que o Expresso publicou em 12/3 – o privilégio da Responsabilidade Política! Não apenas dos técnicos e reguladores.

Tempo, pois, de Primavera, que é sempre Tempo de Esperança e Renovação como na Natureza sábia, que se adapta, resiste e sobrevive! O que precisamos: adaptar para sobreviver. Resiliência, como agora se usa dizer!

Sugerir correcção
Comentar