Testes em massa já só vão servir para “desconfinamento controlado”

Ministério da Saúde anunciou que vai, finalmente, facilitar o acesso a testes rápidos de diagnóstico da infecção por SARS-Cov-2, que podem deixar de exigir prescrição médica. Os especialistas insistem na importância desta ferramenta há já muito tempo.

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Adriano Miranda

Tal como já acontece noutros países e mesmo em Portugal para a infecção do VIH e da hepatite, poderá vir a ser possível realizar um teste rápido para a covid-19 numa unidade de saúde ou numa farmácia e sem prescrição médica. Ou até em casa. Há muito tempo que os especialistas insistem que esta ferramenta pode ser decisiva no controlo da pandemia, que é preciso testar mais do que apenas os contactos de alto risco e identificar casos (sintomáticos ou assintomáticos) de pessoas com cargas virais elevadas que podem infectar outras. Alguns dizem mesmo que os testes rápidos “são a vacina que nós não temos” e que já perdemos demasiado tempo. Esta quarta-feira, a ministra da Saúde anunciou que as regras da testagem vão, finalmente, mudar. 

Não é preciso ter uma memória prodigiosa para recordar a mensagem que tem sido insistentemente repetida sobre a importância de “testar, testar, testar”. Epidemiologistas, virologistas, especialistas em saúde pública, cientistas das mais diversas áreas, governantes e representantes de inúmeras entidades, como as farmácias e os laboratórios, falam nisso há muito tempo. É preciso andar mais rápido do que o vírus e identificar rapidamente o máximo dos casos de infecção para quebrar as cadeias de transmissão. E, para isso, é preciso testar, testar muita gente e testar rápido para decidir rápido.

Até agora a estratégia de testagem em Portugal tem obedecido a critérios mais ou menos restritos. A realização dos testes rápidos de antigénio requer prescrição e acompanhamento médico e só em contexto da investigação de surtos, sob coordenação das autoridades de saúde, “a prescrição individualizada poderá ser dispensada”, segundo uma norma de Novembro da Direcção-Geral da Saúde (DGS). Por outro lado, a mesma estratégia define que os testes devem ser prescritos às pessoas que tiveram um contacto de alto risco com uma pessoa infectada.

Porquê só agora?

Esta quarta-feira, um dia depois da reunião no Infarmed onde mais uma vez os especialistas pediram um reforço da testagem, a ministra da Saúde, Marta Temido, anunciou no Parlamento que as regras vão (finalmente) mudar. Porquê agora? E porquê só agora?

“Atendendo à situação epidemiológica actual, quer pela emergência das novas variantes de SARS-CoV-2, quer pela diminuição da incidência diária de casos de infecção, a DGS vai actualizar as suas orientações, no sentido de reforçar e alargar as indicações para a realização de testes laboratoriais de forma a antecipar um desconfinamento controlado”, refere uma nota de imprensa da DGS divulgada ao final do dia desta quarta-feira. Os pormenores “técnicos” da nova estratégia serão definidos com rigor pela DGS, mas, para já, prevê-se “o alargamento da utilização de testes laboratoriais a todos os contactos (de alto e de baixo risco); a disponibilização generalizada de testes rápidos de antigénio (TRAg) nas unidades de saúde do SNS; e a implementação de rastreios regulares com TRAg em contextos particulares como nas escolas e sectores de actividade com elevada exposição social (trabalhadores de fábricas, trabalhadores da construção civil, entre outros).

A ministra Marta Temido tinha adiantado ainda que se pretende “usar mais massivamente os testes, desde os testes de PCR até aos testes rápidos por antigénio ou de saliva”, prescindir da prescrição médica e até equacionar acesso gratuito e “em locais simples” a estes testes rápidos. A nota da DGS não faz nenhuma referência específica a estes pontos. O PÚBLICO enviou uma série de questões ao ministério sobre este assunto, mas não obteve qualquer resposta.

As “pessoas mais importantes” na pandemia

Os testes rápidos garantem um resultado em cerca de 30 minutos, nalguns casos. Um dos testes rápidos mais fiáveis implica que a recolha da amostra seja feita com zaragatoa, num procedimento que é delicado. É claro que existem já testes de autodiagnóstico mais fáceis, através da saliva ou de uma pequena amostra de sangue (uma picada), mas mesmo esses que já são comercializados em Portugal exigem (por enquanto) a supervisão de um profissional de saúde. Pelo menos até agora, os autotestes – que possibilitam que qualquer pessoa faça este teste em casa, como faz um teste de gravidez ou como já pode fazer para a infecção por VIH – não estavam incluídos na Estratégia de Diagnóstico da Covid-19. Em Dezembro, o Reino Unido autorizou o uso doméstico do teste rápido para detectar infecções em pessoas sem sintomas. Nos EUA onde os testes rápidos comercializados chegam a custar cerca de cinco dólares, também existe essa possibilidade.

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Adriano Miranda

Ao contrário do que se pensava há uns meses, vários estudos já demonstraram que os testes rápidos podem ter uma elevada sensibilidade e especificidade. Mesmo que não detectem cargas virais muito baixas ou infecções muito iniciais, o método rápido e barato permite apanhar as cargas virais mais elevadas, logo, as “pessoas mais importantes”, porque serão também as mais infecciosas. Uma pessoa com sintomas e que tenha um resultado negativo num teste rápido deve sempre repetir a análise com um PCR, mas um positivo é sempre um positivo.

Na reunião do Infarmed, o epidemiologista Manuel Carmo Gomes lembrou que o aviso sobre a importância da testagem em massa é antigo mas será agora mais oportuno que nunca. O especialista considerou que se a incidência continuará a baixar ao longo dos próximos dias, será preciso mudar de estratégia e apostar na testagem em massa de forma a apanhar os casos de infecção precocemente, cortar as cadeias de transmissão e reduzir a taxa de positividade dos testes. “Penso que a testagem é a arma principal que devemos usar e não o confinamento”, enfatizou, acrescentando que os testes rápidos devem ser “gratuitos ou de fácil acesso” e deve ser promovida a sua utilização junto da população, “que deve ser incentivada a acorrer à testagem”. E foi mais ou menos isso que Marta Temido anunciou esta quarta-feira que quer fazer.

“Demorámos demasiado tempo, mas agora não vamos perder mais tempo com críticas”, afirma Bernardo Mateiro Gomes, médico de saúde pública, admitindo que a longa espera por esta medida esteja associada a “um certo preconceito que existia até há pouco tempo com os testes rápidos” juntamente com “uma visão normativa” da testagem. “Faltou uma visão de rasgo no que toca a uma testagem alargada que já existia noutros países e que permite irmos atrás do que não estamos a ver”, diz. Uma testagem orientada com base no que apenas está à vista não chega para travar este vírus. “Temos testar as coisas que não estamos a ver”, insiste.

Testes aleatórios não servem 

Decidir apenas que se vai alargar a testagem também não chega. É preciso definir como isso vai acontecer. “Não vai resolver irmos simplesmente também atrás dos contactos de baixo risco e testá-los”, diz. Uma testagem aleatória ou quase aleatória não traz grande benefício. Houve municípios que o fizeram sem grandes resultados. Mesmo em alguns países, como a Eslováquia, que tentou “varrer” toda a população com estes testes não há registo de grande sucesso neste método.

Assim, além de uma testagem alargada ela tem de ser sobretudo orientada. “Temos de orientar a realização destes testes em massa para locais onde se identifiquem possíveis surtos sem uma ligação epidemiológica identificada”, defende Bernardo Gomes, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. O plano, diz, tem de passar por uma “abertura de portas” de todos os serviços de saúde para fazer testes rápidos e em todo o país. E isso exige que se crie uma capacidade de resposta nesses locais com equipas formadas para realizar estes testes. Por fim, é preciso ter informação de qualidade para orientar a testagem no terreno.

O investigador Carlos Antunes já tinha dito o mesmo ao PÚBLICO há poucos dias, sublinhando a importância da articulação deste trabalho com as equipas do rastreio epidemiológico: “Do ponto de vista estratégico de controlo, ao fazermos um teste aleatório a uma pessoa qualquer em cada mil testes aleatórios que a gente faz à população vamos encontrar o máximo de 15 pessoas, porque isso é a prevalência da doença actualmente. Mas por cada mil testes que faço a pessoas suspeitas, identificadas no inquérito epidemiológico, já vou encontrar 200 ou 250 pessoas infectadas.”

A abertura de portas à testagem facilitada pode envolver ainda as farmácias, muitas já realizam testes rápidos para a infecção por SARS-CoV-2 há vários meses, enviando os dados para o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE). Nada de novo, aliás, para quem há muito tempo gere também a realização de testes rápidos para o diagnóstico de infecção por VIH e hepatite. As farmácias também podem tornar-se um parceiro na campanha de vacinação. Resta saber se há capacidade de resposta para tudo. Em resposta ao PÚBLICO, Duarte Santos, director de Associação Nacional das Farmácias reafirmou que a ANF continua disponível para ajudar a testar a população, assegurando que as farmácias (registadas na Entidade Reguladora da Saúde) reúnem todas as competências técnicas para a realização segura deste serviço. 

O debate dos cientistas

Michael Mina, professor em Harvard, defende há muito tempo a ideia de “imunidade induzida pela testagem” e tem sublinhado a importância de “ter um número suficiente de pessoas a testarem-se a si próprias frequentemente – digamos, duas vezes por semana –, idealmente utilizando testes rápidos”. Os testes rápidos “são a vacina que nós não temos”, concorda Bernardo Gomes.

Uma notícia publicada este mês no site da Nature mostra que o debate entre cientistas persiste. Por um lado, Jon Deeks, especialista em avaliação de testes na Universidade de Birmingham, Reino Unido, afirma que um acesso demasiado facilitado a estes testes “poderia fazer com que muitas pessoas ficassem falsamente tranquilizadas com um resultado negativo do teste e mudassem o seu comportamento”. Por outro, o artigo cita Michael Mina que avisa que este tipo de argumentos está a atrasar uma solução muito necessária para a pandemia. “Continuamos a dizer que ainda não temos dados suficientes, mas estamos no meio de uma guerra – não podemos realmente ficar pior do que estamos neste momento em termos de contagem de casos”, refere.

Alguns especialistas consideram que os testes rápidos podem ser particularmente adequados para o rastreio assintomático em locais como prisões, abrigos para sem-abrigo, escolas e universidades. Catharina Boehme, chefe executiva da Fundação para Novos Diagnósticos Inovadores (FIND), um grupo sem fins lucrativos em Genebra, Suíça, refere no artigo da Nature que não há nenhum teste que se adapte a todas as necessidades, mas os ensaios que podem identificar pessoas que são infecciosas são cruciais para manter as economias mundiais abertas. “Testes em aeroportos, fronteiras, locais de trabalho, em escolas, em ambientes clínicos – todos estes são casos em que os testes rápidos têm muita potência porque são fáceis de usar, de baixo custo e rápidos”, acrescenta.

A única coisa com que todos cientistas parecem mesmo concordar é que tem de haver uma comunicação clara sobre o que são os testes rápidos, e mais precisamente sobre o que significa um resultado negativo. Michael Mina conclui: “Atirar ferramentas a pessoas que não sabem como utilizá-las adequadamente é uma ideia terrível.”

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