“Nacionalismo das vacinas”: uma luta geopolítica e uma lotaria para ter acesso primeiro

Investimentos de milhões e uma enorme movimentação à volta de potenciais vacinas que poderão não ter sucesso: países apostam forte no desconhecido.

Foto
Vários países estão a assinar acordos para a compra de vacinas ainda em estádio experimental EPA/Sebastiao Moreira

Os cientistas correm atrás de uma vacina, e os governos correm atrás das empresas que a possam disponibilizar: o acesso a uma vacina para a covid-19 será uma enorme vantagem de saúde, economia e política para quem a consiga primeiro, porque não vai haver disponibilidade imediata para todos. 

Os líderes da União Europeia, por exemplo, começaram com uma retórica de que a vacina será um “bem global”, mas rapidamente um grupo de quatro (Alemanha, França, Itália e Holanda) começou a negociar compras, diz Alain Alsalhani, do programa Access dos Médicos sem Fronteiras (MSF), em declarações por telefone ao PÚBLICO. Estes quatro países estão entretanto a negociar para o total dos 27. 

Ao site Politico Sueri Moon, do Global Health Center de Genebra, diz que o acesso a uma vacina pode ser comparável ao acesso a armas militares em termos estratégicos. É uma hipótese de fortalecer as alianças, melhorar a posição política e aumentar o prestígio de um país, enumera. Além disso, tem um enorme efeito económico com o fim de restrições em vigor. 

“Temos esta situação de países ricos estarem já a fazer estes acordos bilaterais com empresas e a reservar doses e a fazer pagamentos prévios para o caso de uma destas vacinas experimentais ter sucesso”, diz Alsalhani. “Obviamente que as doses que comprarem são para a sua própria população.”

O Reino Unido anunciou um acordo para 30 milhões de doses de uma potencial vacina da BioNTech e Pfizer, outro com a AstraZeneca para 100 milhões de doses, e outro com a GSK e a Sanofi para 60 milhões. Os EUA têm um acordo para 600 milhões de doses com a BioNTech e a Pfizer, com a AstraZeneca para 300 milhões e ainda com a Novavax para 100 milhões. 

Até agora, os países que estão a negociar pela União Europeia acordaram com a AstraZeneca a compra de 400 milhões de doses. Outros potenciais acordos estão a esbarrar nos preços altos: os 40 dólares por dose pagos pelos EUA por uma vacina da BioNTech/Pfizer são demasiado para a União Europeia, diz a Reuters.

Também há países a avançar na procura de uma vacina, como a China. Mas Alsalhani faz notar que o país “não é um actor global em vacinas”. E, se decidir vacinar toda a sua população, irá demorar tempo até que possa dar ou vender a outros esse tratamento. Além disso, como diz o Politico, poderia disponibilizá-la, mas com contrapartidas políticas. De qualquer modo, já há quem tente posicionar-se: o Presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, disse que pediu a Xi Jinping acesso a uma vacina chinesa.

John Nkengasong, director do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças de África, diz que os governos africanos estão a juntar-se para pedir empréstimos bancários para conseguir acordos como os dos Estados Unidos. “Temos de agir como um continente de 1,3 mil milhões de pessoas para não ficarmos para trás”, declarou à revista Science.

Para todos?

Há dois períodos a ter em conta quando se fala das vacinas, explica Alsalhani. “Já estamos no primeiro: é a produção. Muitas das vacinas experimentais já estão a ser produzidas. Quando houver os primeiros resultados [dos ensaios clínicos], se forem positivos, haverá logo doses que podem ser usadas”, embora numa quantidade muito limitada. “Este primeiro período vai ser muito difícil em termos de acesso a vacinas.”

O segundo começa quando houver um resultado positivo de uma vacina. “E, aí, esperamos que haja transferências de tecnologia e expansão das capacidades de produção para que as vacinas eficazes possam ser fabricadas por outros, além do fabricante original”, que permitam acesso alargado. “Mas vai sempre levar um ano, ou até dois, antes que exista esta capacidade”, alerta.

Charlie Weller, do programa de vacinação da ONG britânica Wellcome Trust, também diz que no primeiro ano após a descoberta de uma vacina não vai simplesmente haver doses suficientes para todos. “Por isso, os mecanismos para fazer uma distribuição justa de recursos escassos vão ser de extrema importância.”

Para tentar resolver o problema existe o programa Covax, que junta a OMS, a Global Alliance for Vaccines (Gavi) e a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI), em que os países reúnem recursos para poder apostar numa maior diversidade de vacinas, doando ainda uma parte a países que não consigam pagar os custos. 

O esquema da Covax é vantajoso, porque permite diversificar a paleta de vacinas experimentais a que os países terão acesso e aumentar as hipóteses de acertar na lotaria que é quais delas (se alguma) terão sucesso. Mas ainda não há confirmação de quantos países vão participar (há um mês para fechar a participação) e não haverá doses para toda a população de todos os países.

Isso não será uma desvantagem em termos de gestão da pandemia, já que a estratégia que permite salvar mais vidas é vacinar primeiro quem trabalha na área da saúde, as pessoas com maior risco e depois quem estiver em locais onde a doença se está a espalhar rapidamente, disse à Science Christopher Elias, da divisão de desenvolvimento global da Fundação Bill e Melinda Gates.

“Não fará sentido nenhum se uma pessoa de baixo risco num país rico for vacinada, enquanto os trabalhadores de saúde da África do Sul não”, exemplifica a activista de saúde pública Ellen ’t Hoen.

Sugerir correcção