Na pandemia da desinformação todos podemos ficar infectados

A infodemia chegou antes da pandemia de covid-19, mas com a última veio um aumento da desinformação ligada aos temas de saúde.

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Valentyn Ogirenko/Reuters

Manhã de 25 de Fevereiro de 2021. Já Portugal estava confinado há mais de um mês quando circulou nas redes sociais (sobretudo no WhatsApp) um plano de desconfinamento que teria sido anunciado pelo Governo. O plano era falso. Contudo, não demorou muito tempo até que isso fosse desmontado: cidadãos desconfiaram, o Governo desmentiu-o, os jornalistas noticiaram que era falso e os fact-checkers desconstruíram-no. Conseguiu-se assim estancar a desinformação. Na maioria das vezes, não é assim tão fácil, o que nos faz constantemente questionar como se pode combater a pandemia da desinformação em que todos podemos ser infectados.

Quando nos referimos a desinformação, falamos do quê? Gustavo Cardoso, investigador e coordenador do MediaLab do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa, diferencia três tipos: a desinformação, a informação errada e a má informação. A desinformação é algo deliberado e que pretende causar dano através de conteúdos falsos, independentemente de ser a uma pessoa, grupo, organização ou a um país. A informação errada está relacionada com o uso errado de algo que está bem, mas, mesmo assim, tem-se o objectivo de enganar. “Embora seja descontextualizada, alguém olha para uma estatística, acha que lhe dá razão e partilha-a porque vai defender a sua posição”, descreve o sociólogo. Por fim, a má informação é baseada em factos reais, mas que estão deturpados.

“Quando estamos a falar de algum tipo de desinformação, o objectivo final é causar dano a alguém”, realça. Ou, mesmo que não se tenha como objectivo directo causar dano, acaba sempre por ter algum tipo de impacto na vida das pessoas. O investigador acrescenta que, normalmente, falamos de fake news quando nos referimos a práticas desinformativas, mas essa é apenas uma pequena parcela do conteúdo desinformativo em circulação. “Se quisermos olhar para aquilo que é efectivamente desinformação hoje em dia, tem [de se considerar que] essencialmente o objectivo é causar a dúvida.” Dessa forma, pode minar certezas associadas às instituições ou ao que faz a sociedade funcionar.

A mensagem somos nós

Gustavo Cardoso pede ainda que observemos para o que é a comunicação hoje. “Hoje estamos numa situação em que as pessoas são a mensagem. Já não estamos no mundo em que [Marshall ]McLuhan [1911-1980, que estudou a comunicação de massas] diz que ‘o meio é a mensagem’”, indica. Quando cada um de nós recebe uma mensagem e não concorda com o seu objectivo inicial, pode comentá-la e partilhá-la numa rede social, podendo mesmo alterá-la. Por exemplo, ao ler uma notícia num jornal e partilhá-la no Facebook com um comentário contrário ao que lá é dito pode alterar a sua própria natureza. “Não quer dizer que exista uma intenção última de causar dano ao outro”, nota o investigador. No fundo, a nossa forma de comunicar mudou e a desinformação é uma das consequências dessa forma diferente de comunicação.

E quem pode ser mais susceptível à desinformação? “A questão não é tanto se há pessoas mais ao menos susceptíveis”, considera o sociólogo. A detecção da desinformação está muito relacionada com o facto de a experiência ser vivida na primeira pessoa, ser próxima de nós ou ser retirada do contexto onde estamos. “Na maior parte das vezes, não temos contacto directo com as situações”, avisa Gustavo Cardoso. Portanto, é importante ter um espírito crítico ligado à capacidade de ter informação prévia sobre o assunto ou à prática da dúvida metódica. Embora não tenhamos sempre tempo para o fazer, o melhor é pensar duas vezes antes de partilhar algo, pesquisar e construir uma análise.

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Investigador aerta que a desinformação não vai desaparecer e o que podemos fazer é tentar minorar o número de pessoas que a partilha Paulo Pimenta

Sobre se há uma ligação entre a desinformação e o grau de escolaridade, Gustavo Cardoso refere que aquilo que se pode dizer é que para cada um de nós ser fact-checker tem de ter um conjunto de competências que muitas vezes só se aprendem mais tarde e não logo na primária. Mas tudo isto está relacionado com o próprio currículo escolar. “Não há nada que nos impeça de ensinar a alguém as questões metódicas e a analisar [a mensagem] que recebe. A questão é que não o estamos a fazer na escolaridade obrigatória e deixamos isso para o interesse de cada um. É aí que as coisas têm de mudar.” Nada indica que isso esteja associado directamente à obtenção de um curso superior. “Há pessoas que têm um curso superior e partilham desinformação porque vai ao encontro do que acham ou porque não estão em contacto com a realidade do que estão a partilhar.”

Precisamente para entender a origem, o percurso e a disseminação do falso plano de desconfinamento, a equipa de Gustavo Cardoso fez a cronologia dos acontecimentos e um inquérito, que teve a participação de 3350 pessoas. No geral, percebeu-se que a dinâmica na sua disseminação cresceu muito à custa do WhatsApp. Além disso, viu-se que o intervalo de resposta para se começar a contrariar esse pseudoplano foi extremamente curto – cerca de uma hora depois de a desinformação ter começado a circular. Nessa contranarrativa entraram cidadãos que reagiram com desconfiança ao falso plano, os jornalistas nas suas redes sociais e as suas notícias nos órgãos de comunicação social, pessoas com credibilidade nas redes sociais também reagiram, bem como fact-checkings e depois desmentidos nas páginas oficiais do Governo.

“É um estudo de caso para próximas vezes em que estivermos perante uma situação idêntica. Uma espécie de manual para saber como se combate a desinformação em tempo real e quem é fundamental que intervenha. É preciso que os jornalistas entrem no processo rapidamente”, salienta. Mesmo assim, é improvável que se volte a repetir. Aqui reuniram-se várias condições-chave para que a desinformação fosse estancada num curto espaço de tempo, tal como mostra um relatório sobre este caso disponível online: era uma situação que apelava a toda a população; dirigia-se directamente ao Governo; contrariava todas as notícias já publicadas; e o autor era cronista no jornal Observador, que estava interessado em desmontar a desinformação. Aqui, as condições estavam todas reunidas para a propagação do pseudoplano fosse rápida, mas também para que a contranarrativa também fosse rapidamente difundida.

Gustavo Cardoso alerta que a desinformação “está para continuar connosco”: “Não vai desaparecer e o que podemos fazer é tentar minorar o número de pessoas que a partilha e ter mecanismos para actuar rapidamente quando começar a surgir”. Os maiores problemas relacionados com a desinformação são aqueles em que o impacto é mais vasto em termos da população. Até final de 2019, estavam sobretudo relacionados com questões de desinformação ano nível político, como a ingerência russa nas eleições dos Estados Unidos em 2016.

A desinformação pandémica

Com o despertar da pandemia de covid-19, houve um aumento de desinformação relacionada com temas de saúde, indica o sociólogo. Tem existido desinformação ligada aos medicamentos, às máscaras faciais ou às vacinas. “A desinformação tenta sempre ter ligação com alguma coisa que nos preocupa e construir uma história em torno dela.” É verdade que antes já havia desinformação relacionada com as vacinas ou as terapias alternativas, mas “era mais contida”, considera Gustavo Cardoso. Também Tricia Moravec, investigadora da Escola de Negócios McCombs (nos EUA), considera que a desinformação em saúde foi dos maiores problemas nos últimos tempos. “O problema com a desinformação pandémica é que pode ter influências claramente negativas na saúde”, diz a cientista que está a estudar os factores que levam as pessoas a acreditar e a partilhar desinformação online.

Investigadores de todo o mundo têm vindo a analisar a desinformação relacionada com a saúde nesta pandemia. É o caso da equipa de Laura Scherer, da Escola de Medicina da Universidade do Colorado, nos EUA. Num dos seus estudos inquiriu 1020 pessoas nos Estados Unidos sobre o rigor de mais de 20 publicações no Facebook e no Twitter sobre a vacina do vírus do papiloma humano (HPV), estatinas e tratamentos para o cancro. Acabou por perceber-se que as pessoas com um grau de escolaridade menor e menos literacia em saúde serão mais susceptíveis à desinformação de saúde, bem como as pessoas que não confiam nos sistemas saúde e apoiam as terapias alternativas. Os resultados foram publicados esta semana na revista Health Psychology.

“A informação imprecisa é uma barreira para os bons cuidados de saúde, porque pode desencorajar as pessoas a seguirem medidas preventivas para evitar doenças e torná-las hesitantes na procura de cuidados de saúde quando ficam doentes”, observa Laura Scherer. Por isso, considera que identificar quem possa ser mais susceptível à desinformação pode mostrar melhor como a desinformação se espalha e levar a melhores formas de intervir.

Os avisos para a desinformação na saúde associada ao vírus SARS-CoV-2 têm-nos chegado quase desde que conhecemos este coronavírus. Em Fevereiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertava que existia uma “infodemia” – um neologismo que se refere à disseminação rápida de textos, imagens e vídeos com desinformação – sobre o novo vírus. Tedros Adhanom Ghebreyesus, director-geral da OMS, afirmava mesmo na altura que a par do combate à doença (a covid-19) havia uma luta em curso contra a partilha desinformação, que colocava a resposta à pandemia em perigo. Ela continua e ninguém está livre de poder cair na sua teia.

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