O aeroporto e o mito de Sísifo

O interminável folhetim do aeroporto regressa à estaca zero, ou quase. Milhares de páginas de estudos, centenas de horas de discussões, milhões de euros investidos em pareceres servirão apenas para memória futura. Por vezes, o país gosta de se mostrar inútil com volúpia e sem arrependimento.

No dia 4 de Março de 2020, o primeiro-ministro declarou com ar solene que “a localização da construção do novo aeroporto está decidida desde 2015 (…) Mal ou bem, o debate sobre a localização ficou concluído”. Esta terça-feira ficámos a saber que, afinal, nem a construção está decidida, nem o debate concluído. O anúncio de uma avaliação ambiental estratégica para responder ao veto dos autarcas da Moita e do Seixal volta a colocar a história do novo aeroporto de Lisboa no preâmbulo. O interminável folhetim regressa à estaca zero, ou quase. Milhares de páginas de estudos, centenas de horas de discussões, milhões de euros investidos em pareceres servirão apenas para memória futura. Por vezes, o país gosta de se mostrar inútil com volúpia e sem arrependimento.

O Novo Aeroporto de Lisboa discute-se há 52 anos. O Governo de António Guterres escolheu a Ota. Depois veio Alcochete. Mais tarde Portela+1, que depois de um vago anúncio do Governo de Passos Coelho e da determinação de António Costa se cristalizou sem a possibilidade de “um plano B” ao do Montijo. Quando se soube que tudo iria ser reconsiderado, seja o Montijo grande e Humberto Delgado pequeno, seja o contrário, seja outra vez Alcochete, só se pode ficar com a sensação de que alguém perdeu o juízo no vaivém. A pandemia, é certo, mudou o mundo. O parecer dos autarcas, é óbvio, sustenta-se numa legislação absurda. Mas é impossível não notar no processo uma clamorosa falha no modo de decisão do Estado.

Se o poder de veto dos autarcas era estúpido, alguém deveria ter revogado a lei que o institui antes. Se hoje, sete anos depois da aposta no Montijo, faz sentido considerar Alcochete, essa possibilidade deveria ter sido considerada à partida. Se um aeroporto no campo de tiro pode ser modular, se está fora de uma zona de sensibilidade sísmica, se não configura um atentado ambiental como o Montijo, se merece mais apoio dos representantes da população local, porque teve o país de gastar anos a fio energia, dinheiro e tempo em vão?

Hoje não há a pressão do esgotamento da Portela, dir-se-á. Repete-se o que se dizia no tempo da Ota ou de Alcochete. Com o processo de regresso ao ponto de partida (mesmo que haja estudos aproveitáveis), o novo aeroporto de Lisboa repete o destino de Sísifo. Quando a pedra está perto do cimo do monte, Sísifo tem de regressar ao ponto de partida para a carregar de novo. Se o mito serve para ilustrar o absurdo da condição humana, não deixa de ilustrar o absurdo das opções políticas em torno do velho novo aeroporto de Lisboa.

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