Portugal: um país órfão de epidemiologistas?

Do meu ponto de vista, afirmar que em Portugal há “zero epidemiologistas” não respeita suficientemente o enorme trabalho que tem sido desenvolvido, e não contribui para a credibilização dessa actividade científica no nosso país.

Recentemente, em publicações nas redes sociais, Joana Amaral Dias (JAD) recorreu à tabela de especialidades médicas do Instituto Nacional de Estatística (INE), para descobrir quantos epidemiologistas haveria em Portugal. Como não encontrou nenhum, concluiu que Portugal não tem epidemiologistas.

Ou seja, se percebi bem, o argumento de JAD assenta no princípio de que a epidemiologia é uma especialidade médica, e que só um titular dessa especialidade pode ser denominado epidemiologista. Por outras palavras, um epidemiologista é obrigatoriamente um médico. Segundo esse critério, JAD tem razão: Portugal não tem epidemiologistas. No entanto, desconfio de que muitos outros países do mundo também não terão. Se consultarmos, por exemplo, o American Board of Medical Specialties (abms.org), constatamos que a epidemiologia não aparece listada como especialidade médica. Logo, podemos concluir que também os EUA não têm epidemiologistas? Se viermos para a Europa, não ficamos necessariamente mais aliviados, uma vez que nem a União Europeia de Médicos Especialistas (uems.eu) nem a Associação Médica Europeia (emanet.org) listam epidemiologistas, deixando antever que não há um critério de uniformidade na atribuição dessa especialidade. Então onde andam os epidemiologistas deste mundo? Podemos, desde já, imaginar que não estarão (todos) reunidos em listas de especialidades médicas. Nem cá, nem noutros países.

De facto, nos EUA, a epidemiologia não é considerada uma especialidade exclusivamente médica. Um dos mais destacados departamentos universitários da área está associado à Escola de Saúde Pública de Harvard, e não à Escola Médica, desde 1946. Já o U.S. Bureau of Labor Statistics comenta que “a maioria dos epidemiologistas tem um mestrado em saúde pública, ou campo relacionado, e alguns completaram um doutoramento em epidemiologia ou medicina”. Mais uma vez, nos EUA, medicina e epidemiologia são encaradas como campos disjuntos, embora podendo ter intercepções óbvias.

Pode uma definição de epidemiologia ajudar a perceber ainda melhor o porquê de esta não ser exclusivamente uma especialidade médica? Na verdade, não é tarefa trivial chegar a uma definição absoluta desse campo multidisciplinar (alguém que conte, por favor, quantas vezes vou escrever a palavra “epidemiologia”). Para facilitar, proponho que se concorde com a definição da nossa amiga Wikipédia (os mais puristas perdoem esta escolha, mas é apenas pela facilidade de acesso online). Epidemiologia (traduzido da página em inglês) é o estudo e análise da distribuição (quem, quando e onde), padrões e factores de risco das condições de saúde e doença em populações definidas.

Historicamente, os estudos epidemiológicos estavam ligados à prática da medicina. Mas quando chegamos ao século XX, com o trabalho de investigadores como Ronald Ross e Anderson Mckendrick, também eles médicos de formação, observou-se uma crescente atenção à modelação matemática. Ross, por exemplo, trabalhou de perto com a matemática Hilda Hudson para entender melhor a propagação de doenças infecciosas. De facto, a epidemiologia moderna é uma área multidisciplinar que não usa apenas conhecimentos de medicina ou gestão sanitária, mas também de modelação matemática, análise de dados ou computação.

Em boa verdade, alguns cientistas com créditos em estudos epidemiológicos não são médicos de formação. O importante William Kermack formou-se primeiramente em ciências matemáticas. Hoje em dia existem muitos e bons epidemiologistas espalhados pelo mundo, e boa parte não tem obrigatoriamente um grau em medicina. Gosto sempre de dar o exemplo do epidemiologista Adam Kucharski, matemático de formação que, no intervalo da sua investigação, escreveu um belo livro de divulgação no princípio de 2020 sobre As Leis do Contágio [Ideias de Ler]. Outro exemplo pode ser Allesandro Vespignani que é físico de formação e, hoje em dia, especialista em epidemiologia computacional. Podem estes casos ser denominados “epidemiologistas”? Eu direi que sim.

E em Portugal, como ficamos, uma vez que a “suposta” especialidade médica também não consta na lista do INE? Ou podemos ver a questão de outro ponto de vista: sem uma especialização perfeitamente definida, será que existe alguma especialidade médica (para o efeito de especialização, não consideremos as cadeiras dadas na licenciatura em Medicina) onde a epidemiologia seja um dos troncos principais? Sim, existe: principalmente Saúde Pública e Infecciologia. Vejamos o exemplo da saúde pública. Se consultarmos no Diário da República a Portaria n.º 141/2014 (8 de Julho), vemos a actualização do programa de formação da área de especialização de Saúde Pública. Neste programa, além do ano comum, temos regulamentados os cursos e estágios onde, supostamente, é ministrada uma formação específica em epidemiologia, estatística, controlo de doenças transmissíveis, controlo de surtos, etc. (continuar a descrever a portaria desmotivaria todos os que tiveram paciência de acompanhar até aqui).

E fora das faculdades de Medicina? É um deserto de formação e investigação na área? Claro que não, uma vez que existem pós-graduações em epidemiologia em várias instituições universitárias, que acolhem candidaturas provenientes de diversas áreas científicas e médicas. Outras instituições têm competências expressas na formação de pessoal e na investigação. Refiro, por exemplo, o Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) e a Escola de Saúde Pública (onde, desde 2010, se realizaram 12 teses de doutoramento com o selo interno “epidemiologia”). Existem ainda outras escolas superiores, como o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), a norte.

Obviamente que em Portugal também se faz investigação na área. Naturalmente, nas instituições já referidas, a que se juntam, isoladamente ou em colaboração, por exemplo, o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) e o Instituto de Medicina Molecular (IMM). Numa busca rápida no Portal de Produção da Universidade Nova de Lisboa, obtive 1094 resultados de contribuições com palavra-chave “epidemiologia”. No INSA, por exemplo, encontrei 13 publicações catalogadas em “epidemiologia” e 27 em “epidemiologia clínica”.

Sem querer desenvolver mais o texto, volto às palavras de JAD, para tentar justificar de onde apareceram os “X+Y+N epidemiologistas” de um momento para o outro em Portugal. Eu diria que o X corresponde ao pessoal treinado na especialidade de Saúde Pública e Infecciologia; o Y, corresponde a pessoal médico e não-médico que prosseguiu alguma formação pós-graduada em epidemiologia; e a N correspondem todos os outros, curiosos ou mais sérios, de boa ou menos boa qualidade. Eu diria que é nesse grupo que talvez estejam alguns “cogumelos” identificados por JAD. Porque também os há e, ao contrário do que pode parecer até aqui, é importante reter que a epidemiologia também não se resume à resolução de equações diferencias ou à produção fria de estatísticas. Há depois a análise e a interpretação de dados, conferindo a tal ligação ao real e ao humano – talvez esse seja o contributo das ciências da saúde – que, na minha opinião, jamais deve ser esquecida por quem quer fazer boa ciência nesta área científica. 

Para terminar, não tenho razões para crer que as intenções de JAD não sejam as melhores. Mesmo não concordando com muitas afirmações que tem feito publicamente, reconheço-lhe uma preocupação com alguns impactos sociais desta pandemia. No entanto, do meu ponto de vista, afirmar que em Portugal há “zero epidemiologistas” não respeita suficientemente o enorme trabalho que tem sido desenvolvido, e não contribui para a credibilização dessa actividade científica no nosso país. Não tenho dúvidas de que os epidemiologistas, e demais cientistas portugueses que têm produzido boa ciência nesta fase, têm qualidade suficiente para orientar o Governo e restante sociedade, quando se põe a questão de agir da forma mais informada possível em contexto pandémico.

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