A Geografia de Ptolomeu ou o texto obsoleto mais importante de sempre

Desconhece-se o paradeiro do manuscrito grego original, certamente perdido há muitos séculos (se algum dos leitores o tiver por casa não precisará de voltar a jogar no Euromilhões).

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Mapa do Mundo, representado na segunda projecção proposta por Ptolomeu (Leinhart Holle, 1482). DR

Um dos mais populares e fascinantes eventos da história mundial – a chegada de Cristóvão Colombo a um Novo Mundo, pensando que era a Ásia – está associado à leitura de um texto escrito cerca de 1350 anos antes, em Alexandria, no Egipto. Esse mesmo texto continha importantes informações geográficas e foi um dos que Colombo utilizou para determinar a distância da Península Ibérica à Ásia. Sem perceber que a sua estimativa estava errada, o navegador fez-se ao mar em direcção a oeste e o resto é a história que se conhece.

O tal texto era a Geografia, escrito por Cláudio Ptolomeu, por volta do ano 150 d.C. Este imponente documento reuniu o maior conhecimento sobre geografia e cartografia até então produzido no mundo greco-romano. Além dos contributos originais, Ptolomeu utilizou bastante informação reunida por gerações de homens da ciência anteriores, como Marino de Tiro, que de outra forma seriam absolutamente desconhecidos nos nossos dias e a quem Ptolomeu reconheceu o mérito.

Nenhum texto coevo comparável chegou aos nossos dias. De forma simplista, a Geografia de Ptolomeu é uma espécie de Google Maps dos tempos antigos. Daqui se percebe a enorme importância desta descrição do mundo, que compilou as localizações, em valores de latitudes e longitudes, de cerca de oito mil lugares espalhados pela Europa, Norte de África e Ásia, cobrindo uma área que se estendia do meridiano das Ilhas Afortunadas (as Ilhas Canárias) até terras chinesas, já a oriente da Taprobana de Luís de Camões (Sri Lanka).

O texto ptolemaico não se resumiu a uma lista infindável de lugares, o que, por si só, já seria um feito impressionante. A sua novidade e valor estavam também no uso da matemática e astronomia na construção da descrição do mundo. Os capítulos teóricos continham métodos matemáticos que exploravam o uso de coordenadas geográficas e de três projecções cartográficas que permitiam construir e reproduzir mapas do mundo conhecido mas também de regiões mais pequenas.

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Mapa regional da Península Ibérica. A porção de terra mais à esquerda corresponde à Ponta de Sagres. Edição manuscrita de Nicolaus Germanus (Reichenbach: 1467) DR

De facto, não sabemos se Ptolomeu alguma vez desenhou mapas; se o fez, não há notícias de que tenham chegado aos nossos dias. Também se desconhece o paradeiro do manuscrito grego original, certamente perdido há muitos séculos (se algum dos leitores o tiver por casa não precisará de voltar a jogar no Euromilhões). O texto original foi sendo copiado em grego, teve versões latinas de algumas partes e passou ainda pelo mundo árabe, onde foi muito conhecido e estudado a partir do século IX. Em particular, as concepções de Ptolomeu foram influentes no trabalho do grande geógrafo al-Idrisi que, no século XII, fez o famoso mapa conhecido por Tabula Rogeriana.

A Europa medieval parece não ter dado muita importância ao texto ptolemaico mas este cenário viria a mudar em 1406 com a sua tradução para latim, concluída pelo florentino Jacobus Angelus. Esta tradução desencadeou um enorme interesse junto dos intelectuais europeus originando várias edições, umas com e outras sem mapas. A primeira edição impressa com mapas foi feita em 1477, em Bolonha, e até 1490, mais sete edições foram produzidas, tornando a Geografia num best-seller segundo os padrões da altura.

O texto da Geografia teve um enorme impacto nas concepções geográficas por toda a Europa e Portugal não foi excepção. A obra circulou em manuscritos e a primeira, e única, tradução para português de parte dos capítulos teóricos foi feita em 1537, pelo grande cosmógrafo e matemático Pedro Nunes. Anos antes já D. Afonso V havia encomendado um mapa-múndi que continha influências ptolemaicas e que, ao mesmo tempo, já tinha dados das recentes expedições portuguesas. O famoso mapa de Fra Mauro foi encomendado em Veneza e terminado em 1459. É bem possível que, apesar dos esforços de Fra Mauro para mostrar que a África podia ser circum-navegada, o mapa não tenha sido do agrado das autoridades que já possuíam informações geográficas mais avançadas. Consta que este mapa esteve exposto no Castelo de São Jorge, tendo desaparecido para paradeiro incerto por volta de 1494. Hoje em dia sobrevive uma cópia feita na mesma oficina e no mesmo ano que serve de guia para o estudo deste maravilhoso mapa.

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Mapa de Fra Mauro (Veneza, c. 1459). O mapa da figura mede 2,2x2,2 m. Notar a orientação do mapa com o Norte para baixo. A Península Ibérica está a leste (Centro Direita). Em exposição no Museo Correr, Veneza. DR

Durante o século XV, o tratado de Ptolomeu foi fundamental para estabelecer uma nova imagem do mundo e para fomentar o interesse científico pela cartografia e geografia. No entanto, a vida útil da sua informação geográfica seria curta. A Geografia transmitiu muitas informações que se viriam a comprovar falsas, como por exemplo o reduzido tamanho da zona habitada e o Oceano Índico ser um mar fechado. Estas ideias seriam, em pouco tempo, desafiadas pelas novidades das viagens ibéricas. Ainda que à custa de alguns enganos felizes, como o de Colombo, foram estas as viagens que ajudaram a redefinir as dimensões dos continentes, o tamanho da Terra, e a posição de terras antigas e novas.

 

 

Esta série, às segundas-feiras, está a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História da Ciência e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação

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