Pérolas a porcos (ou a vergonhosa vacinação portuguesa)

O que faz ainda mais sentido do que tudo isto é existir decência, integridade e menos compadrio. O que faz mesmo sentido é que cada um destes prevaricadores seja destituído dos cargos que ocupa e que, de uma vez por todas, se acabe com esta miserável sensação de impunidade.

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Daniel Rocha

Nos últimos dias, pela primeira vez em 34 anos, tenho sentido uma vergonha imensa de ser portuguesa. E eu, que sempre me recusei a emigrar, começo a pensar se não seria mesmo mais inteligente pegar nos miúdos e marchar para um país onde a corrupção seja, pelo menos, um bocadinho mais envergonhada. É que aqui o sentimento de impunidade é de tal ordem que já ninguém se parece sequer preocupar em esconder o “corruptozinho” que tem dentro de si. E só isto, só esta total sensação de impunidade, pode explicar a promiscuidade a que temos assistido na questão das vacinas contra a covid-19.

O novelo começou a desenrolar-se em Reguengos de Monsaraz, onde o presidente da autarquia, apesar de não integrar nenhum dos grupos prioritários, foi inoculado com a vacina. E a falta de noção foi de tal ordem que deu até direito a fotografia do momento nas redes sociais. A justificação apresentada posteriormente, quando o escândalo estalou, foi o seu cargo de presidente da direcção da fundação dona do lar. Sim, desse lar que estão a pensar. E esta justificação, lamento, só cola em quem não faz a menor ideia de como estas instituições funcionam, porque, garantidamente, o presidente da direcção não exerce funções de prestação directa de cuidados aos utentes. Ou alguém acredita mesmo que o presidente, nas horas vagas, vai fazendo umas higienes, mudando umas fraldas e ajudando na alimentação dos idosos?

Outra característica do chico-esperto português é que acredita, desde o mais profundo do seu ser, que todos os outros são idiotas. E só isso pode levar à tentativa de nos enfiarem olhos adentro a questão das doses sobrantes como justificação para a vacinação indevida. Ora, os factos:

  1. Sabemos que com a utilização de seringas e agulhas adequadas (de baixo volume morto) é possível extrair seis doses de cada frasco da vacina da Pfizer;
  2. As listagens do pessoal a vacinar são enviadas aos serviços por cada instituição;
  3. Se numa determinada instituição existirem, por exemplo, 59 utentes e 47 funcionários envolvidos na prestação directa de cuidados, serão abertos 18 frascos da vacina, o que implica que teremos um total de 108 doses para vacinar 106 pessoas;
  4. Existindo duas doses sobrantes, a regra é contactar duas pessoas pertencentes ao mesmo grupo de prioridade vacinal e inocular-lhes a vacina. E só uma muito má gestão impede que tal aconteça e que atempadamente se contactem pessoas no mesmo grupo prioritário para que não haja desperdício de doses.

Mas sabem qual é o problema? É que muitas instituições, nas listagens que enviam, já colocam os dirigentes ou provedores. E não, nos serviços que estão absolutamente assoberbados, ninguém vai jogar ao “quem é quem”. Contam-se as doses pedidas e iniciam-se os procedimentos. Porque se parte do princípio de que existe decência e respeito por parte de quem envia as listas.

Acontece que, neste país, o carácter e a honra parecem ser qualidades que ultimamente escasseiam. E é por isso que Reguengos não foi caso único e tivemos mais do mesmo em Arcos de Valdevez, Bragança, Vieira do Minho e, de uma forma ainda mais grave, percebemos a absoluta promiscuidade que norteou a administração das vacinas anticovid-19 no INEM e na Segurança Social de Setúbal.

Isto é doentio. É doentio quando ontem tínhamos apenas 74 mil pessoas com a vacinação completa e 183.500 inoculadas com a primeira dose. Num país com 10,28 milhões de pessoas.

E já que escrevo sobre vacinas, deixem-se só acrescentar que é impossível ao cidadão comum não mergulhar numa profunda indignação quando, a juntar a todos estes casos, vê os deputados passarem a integrar um grupo prioritário na vacinação. E poupem-nos ao argumento da demagogia e da importância do papel de deputado para a soberania nacional. Até onde sei, os deputados são eleitos em listas e, como tal, em caso de impossibilidade de desempenharem as funções para as quais foram eleitos, podem ser substituídos sem necessidade de escrutínio.

Se faz sentido vacinar as mais altas figuras da nação? Sim. Se faz sentido vacinar os ministros e gabinetes mais directamente relacionados com a gestão da pandemia? Evidentemente. Se faz sentido vacinar 230 deputados fora da sua prioridade? Não. O que faz sentido é inocular rapidamente a vacina a quem tem maior risco de adoecer gravemente com a pandemia e, assim, necessitar de cuidados do nosso SNS, que, neste momento, se encontra absolutamente colapsado. O que faz sentido é terminar a primeira fase de vacinação e inocular rapidamente todos os profissionais de saúde, sejam do sector público, privado ou trabalhadores independentes.

Mas o que faz ainda mais sentido do que tudo isto é existir decência, integridade e menos compadrio. O que faz mesmo sentido é que cada um destes prevaricadores seja destituído dos cargos que ocupa e que, de uma vez por todas, se acabe com esta miserável sensação de impunidade que adoece o cidadão comum e que dá a quem se alimenta do populismo uma quantidade quase infinita de munições.

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