#JustiçaEmCasa

O direito a aceder a um tribunal e a um julgamento justo impõem que a institucionalização – mesmo que temporária – dos telejulgamentos não seja concretizada.

A Ordem dos Advogados (OA) demonstrou, em 24 de Janeiro de 2021 a sua preocupação pela actual situação de indefinição vivenciada nos Tribunais, depois do anúncio pelo Senhor Primeiro-Ministro, na passada quinta-feira, dia 21, da suspensão dos prazos processuais nos processos não urgentes, que referiu que se iniciaria no dia seguinte, 22 de Janeiro.

Nos termos da nossa Constituição, a organização judiciária é matéria da competência da Assembleia da República (AR) pelo que a suspensão dos prazos e diligências não pode ser decretada sem lei que a estabeleça, o que, até à data não existe. Inexiste hoje qualquer instrumento legislativo que habilite um Tribunal a decidir suspender os atos já previamente agendados em virtude da situação pandémica que nos assola e que continua a obrigar às deslocações a Tribunal dos cidadãos, Magistrados, Advogados, funcionários, peritos, etc.

Urge que esta situação seja ultrapassada conforme o apelo já demonstrado por parte de alguns Advogados e do Bastonário da OA, Dr. Luís Menezes Leitão já que não é possível que o sistema judiciário português labore sob a declaração de “suspensão dos prazos processuais” por comunicação do Conselho de Ministros.

Conhecendo alguns apelos da comunidade jurídica, mas não só, cumprir-me-á pugnar que mal andará o Parlamento e os deputados que votem uma proposta que determine a realização de julgamentos através de meios de comunicação à distância, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente.

Alicerçada na hodierna filosofia do deslumbramento tecnológico, segundo a qual todos os problemas são passíveis de ser solucionados pela tecnologia, a estandardização dos telejulgamentos consubstancia uma solução totalmente desapropriada, o que deve, por isso, merecer a sua sinalização, tal como mereceu por parte dos profissionais da Justiça em Maio de 2020 quando este exacto problema foi trazido à colação.

Os julgamentos são atos públicos, o que possibilita que qualquer cidadão aos mesmos possa assistir. Não obstante, se for previsível que a publicidade possa causar grave dano à dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso do ato, o Tribunal pode — por sua iniciativa a requerimento dos interessados — restringir a assistência do público ou ordenar que o ato ou parte dele ocorra sem público. O objetivo é facilmente percetível na medida em que a publicidade assegura o desiderato democrático do escrutínio das decisões e de todos os atos praticados em juízo. 

Como concretizar um julgamento público através de uma plataforma informática à qual apenas acedem os intervenientes processuais?

Acresce que os Tribunais confrontam-se com litígios e dirimem-nos. Para o efeito, aos Tribunais dirigem-se e socorrem-se os cidadãos nas suas mais variadas vestes: empresários, trabalhadores, vítimas, arguidos, progenitores, sinistrados, herdeiros, crianças, jovens, associações, etc. Estes litígios são, muitas vezes, os litígios de uma vida. Destas querelas dependem, por exemplo, situações como a restrição da liberdade de um arguido, a atribuição da guarda exclusiva de uma criança a um progenitor, a solvência de uma empresa. Qualquer decisão de um Tribunal é precedida de vários atos processuais, que são sequenciais e que têm por ato supremo a audiência de discussão e julgamento. É no ritual – verdadeiramente litúrgico num Estado de Direito – de um julgamento que são prestados os juramentos das testemunhas, que são apreciadas as declarações das partes, dos peritos, das testemunhas e demais intervenientes.

É em julgamento que os Juízes, de acordo com os chamados princípios da imediação e da oralidade, apreendem e avaliam da fiabilidade in loco da prova e o acerto dos factos do litigio. O julgador pode criar a sua convicção da verdade dos factos através do depoimento de uma testemunha mais nervosa e pouco credível convencendo-se que um determinado facto não aconteceu nos termos relatados. Em julgamento podem, também, ser as testemunhas confrontadas entre si e contraditados os seus depoimentos. É, também, em Tribunal e pessoalmente que são ouvidas as vitimas e as crianças nos processos e jurisdição de menores.

O direito a aceder a um Tribunal e a um julgamento justo (previsto na nossa Constituição no art. 20.º da CRP e em várias normas de Direito Internacional, como seja o art. 14.º do Pacto Internacional Sobre Os Direitos Civis e Políticos e o art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), impõem que a institucionalização – mesmo que temporária – dos telejulgamentos não seja concretizada. Não se descura a admissibilidade de muitos atos serem passíveis de serem executados à distancia por meios tecnológicos, como, aliás, desde o início da pandemia os nossos Tribunais o têm feito. Mas tratam-se de vários atos processuais presenciais que não o julgamento como sejam tentativas de conciliação, audiências de parte, conferências de interessados, etc.

Para salvaguarda de um julgamento justo não é possível concretizar telejulgamentos na generalidade dos litígios que correm termos nos Tribunais, conforme, aliás, comummente várias organizações de direitos humanos assinalam, sendo explicito que os direitos dos cidadãos ficam, gravemente, afectados com as soluções de litígios dirimidos à distância. Não é possível aquilatar da credibilidade de um depoimento de uma testemunha prestado através destes meios tecnológicos, não se negligenciando que fica impossibilitado o confronto desta com documentos e/ou outros intervenientes. Não é possível fixar como regra que uma vitima de violência doméstica possa de forma responsável ser inquirida através da câmara de um computador ou telemóvel, desconhecendo-se se o agressor ou alguém a seu mando estará do outro lado da sala a limitar ou coagir o seu depoimento. Pelas mesmas razões, também, não é possível que uma criança envolvida num processo que dirime as responsabilidades parentais seja ouvida desta forma.

A solução exalada do deslumbre informático não é solução e os Tribunais adaptar-se-ão à nova realidade que o legislador deve prever de forma inteligente, consciente e respeitadora do direito a um julgamento justo, respeitando-se, evidentemente, as regras de saúde pública. Se, como nos dizem, a vida continua mesmo em estado de pandemia, também os litígios e os problemas dos cidadãos perdurarão e dirimir-se-ão numa sala de audiências de um qualquer Tribunal e não através de chat de um telejulgamento

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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