Matar fascistas

O que há aqui de chocante? A implícita apologia da violência. Da violência revolucionária. A esquerda cala-se e, no seu íntimo, aprova; a direita reprova e rejeita, mas fica calada.

Em 9 e 10 de Dezembro foi exibida no CCB uma peça encenada pelo director artístico do Teatro Nacional D. Maria II, Tiago Rodrigues, que é também o autor do texto a que deu o título gentil de Catarina e a Beleza de Matar Fascistas. A peça subirá ainda ao palco no teatro nacional nas datas simbólicas entre 7 e 25 de Abril de 2021. Espera-se um sucesso apoteótico, graças à qualidade e pertinência da peça e ao grande fervor antifascista que ainda por aí grassa. O desaforo do título escolhido revela o sentimento de impunidade da esquerda, e o silêncio envergonhado da direita. Quem, da direita, ousou manifestar-se contra uma abjecção destas? Imagine o leitor que eu publicava um texto intitulado A Beleza de Matar Comunistas; imaginem que na minha família existia uma “tradição antiga que cada membro da família sempre seguiu”, a de matar comunistas. Mal o texto fosse tornado público, de imediato se levantaria um tsunami de insultos e uma enxurrada de exigências de ostracização da minha pessoa.

Quem não venera o PCP nem o Bloco, quem não simpatiza com a ala esquerdista do PS, quem não alinha pela extrema-esquerda, quem não aprecia antifascistas com o zelo de Tiago Rodrigues merece ser punido e expulso da polis. Tiago Rodrigues foi nomeado director artístico do Teatro Nacional em 2018, e viu agora o seu mandato renovado para o triénio de 2021-23. A vida tem-lhe corrido bem. Em 2019 foi galardoado com o prémio Pessoa. Está visto – como de resto já sabíamos de sobejo que ser de esquerda rende muito, seja ela moderada ou radical.

Numa espécie de sinopse que acompanha o anúncio da futura estreia, pode ler-se que a tradição familiar e “antiga que cada membro da família [de Catarina] sempre seguiu” foi a de, sem falhas, matar fascistas. Mas o título acrescenta algo mais: acrescenta – a “beleza de matar”. Afinal, o acto de matar ergue-se até ao elevado e sublime patamar do belo; nessas alturas cruza-se com os assassinos do ucraniano que, segundo a tese de Tiago Rodrigues, podem muito bem ter actuado impelidos por uma irreprimível sede de beleza.

A peça, de seguida, para preencher a sua notória vacuidade, encena uma dissidência familiar destinada a conferir-lhe uma pontinha de tensão dramática. Catarina estraga o que estava pensado para ser “um dia de festa, de beleza e de morte”: chegado o dia de matar o seu fascista, hesita, tremula e recusa-se a perpetrar o assassinato. E a partir daí “estala o conflito familiar”. A discussão suscitada pela recusa de Catarina desagua numa série de perguntas morais que até aí não tinham perturbado o remanso familiar: desde logo, o que é um fascista? A sequente discussão passa-se já sob a presença fantasmagórica de uma outra Catarina, a ceifeira Catarina Eufémia, assassinada pela PIDE em 1954. Este ensombramento funcionaria como o papel do coro nas tragédias gregas. A PIDE não resistira à beleza de matar Catarina Eufémia! Porque haveria a família de resistir e violar a sua orgulhosa tradição? A violência será legítima quando a ela se recorre para fundarmos um mundo melhor? Quando a ela se recorre para defender a democracia? A resposta subliminar de Tiago Rodrigues é positiva.

O que há aqui de chocante? Há aqui de chocante a implícita apologia da violência. Da violência revolucionária. A esquerda cala-se e, no seu íntimo, aprova; a direita reprova e rejeita, mas fica calada. Os meios justificam os fins? A história do século XX diz-nos que não. Porém, são tantos e tantos os intelectuais da segunda metade do século XX que teorizaram e ostentaram – sim, ostentaram – a sua cumplicidade e solidariedade com a violência soviética e, depois, como se o estalinismo não bastasse, a sua admiração pelo maoismo! Não há como não concluir que a violência fascina.

Mas o mais intrigante, neste século XXI, é o pouco que aprendemos com a História. Apesar da ONU, da UE, da NATO, a ideia de violência revolucionária não morreu, apenas aguarda um momento oportuno para de novo matar fascistas, para que reabra a época da caça. O título da peça citada é uma provocação muito reveladora: Catarina e a Beleza de Matar Fascistas. Que beleza é esta que se exprime através da violência assassina? Será que existe algo de belo no horror? Talvez.

É lamentável. Porém, o mais tenebroso é que a “violência”, quer de esquerda ou de direita, quer seja a violência do Estado, continue a imperar descansadamente. O ucraniano morto à paulada – algo que no século XXI julgávamos já não fazer parte dos costumes – não suscitou nenhuma indignação ou alarme por aí além. Só recentemente, graças à comunicação social, fomos informados sobre a gravidade do que há demasiado tempo se estava a passar. Então, sim, o assassínio do ucraniano pelo Estado suscitou um sobressalto das consciências. E parece que o dr. Cabrita (o Estado, portanto), tendo sob a sua alçada tudo o que diz respeito à Administração Interna, teve finalmente um amargo despertar do seu letargo. A aflição inspirou-o: colocar um botão na sala de interrogatórios para que peçam socorro os que, apanhados nas malhas diabólicas do SEF, já não aguentam mais pancada. Ou seja: o ministro Cabrita, conhecedor há muito tempo do que se passa nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, quis suavizar a violência do que por lá se faz e ele bem sabe o que é. Caso não soubesse, não prevenia a coisa com um ridículo botão para quem está entre a vida e a morte e não experimentou ainda a alegria de matar, só o horror de ser morto.

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