Uma peça de teatro é apenas uma peça de teatro (ou talvez não apenas)

Que os fascistas não valorizam o outro, é consabido. Na nova peça de Tiago Rodrigues, ficou claro que os que matam fascistas também não dão valor ao outro. Também não dão valor à vida humana. Não são diferentes. São tão fascistas como eles, na sonegação de valores inerentes à convivência democrática.

Catarina e a beleza de matar fascistas
De Tiago Rodrigues
Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, 20 de setembro de 2020

“Se tiverdes precisão, não hesiteis em fazer o mal para praticar o bem.”
“Quando a ordem é injusta, a desordem é um princípio de justiça.”

O teatro pode ser político, olhando para o passado, emprestando-lhe uma nova grelha de leitura que medra no úbere da criação artística. Também pode ser político como pressentimento, uma certa forma de se fazer oráculo.

T. Rodrigues combinou as duas facetas nesta peça. Mergulhou no passado da ditadura, na morte de Catarina Eufémia como ponto de partida para o enredo. Uma amiga de Catarina Eufémia não perdoou o marido, agente policial que assistiu passivamente ao assassínio de Catarina Eufémia, e tirou-lhe a vida à frente dos filhos. Aí começou uma tradição anual que esta Catarina legou aos sucessores, todos e todas Catarinas: todos os anos, um fascista teria de ser morto num ritual familiar e depois enterrado sob um sobreiro, na propriedade da família. No seu oráculo, o encenador antecipa-se ao tempo futuro. Em 2028, o partido da extrema-direita chegou ao poder e formou governo. O ritual anual da família de Catarinas ganha um sabor diferente. É a primeira vez que um fascista vai ser morto depois de os fascistas terem chegado ao poder com a franquia da maioria dos votantes.

Naquele ano, o ato iniciático de matar o fascista coube a uma Catarina que chegou aos vinte e seis anos de idade. A rapariga ficou paralisada pela dúvida e não conseguiu premir o gatilho. Depois de discutir com a mãe, parece convencida da beleza que é matar um fascista. Não pode haver hesitações no momento de fazer o mal se esse mal é a janela onde fermenta o bem. Todos os argumentos da rapariga foram anulados pela persuasão da mãe.

Todavia, a rapariga é outra vez tomada pela hesitação. Não consegue matar o fascista. E todas as Catarinas são mortas sem se saber como. Sobrevive uma Catarina, o primo silencioso, o último penhor de valores que não se reviam na barbárie das Catarinas. E sobrevive o fascista, que escapa à execução sumária. O primeiro que teve essa sorte, depois de setenta e seis fascistas que passaram a fazer de húmus daquele montado alentejano.

O fascista ergue-se, vitorioso, exsudando pesporrência. Num salto cronológico, ao fascista é garantido o apogeu num discurso aos sequazes. Um longo e extático discurso. O recurso discursivo bebe no catecismo político dos “fascistas emergentes”: um caldo de ideologização nacionalista, racismo, intolerância com as minorias étnicas, subalternização da mulher e irrelevância da violência doméstica, denúncia das elites, respeito religioso das forças policiais, protesto contra a corrupção (imputada ao regime político decadente), intransigência com a homossexualidade, apologia do liberalismo económico (aqui Rodrigues comete um equívoco), ódio à Constituição vigente.

A salvação do fascista parecia ser o epílogo. Se a peça terminasse nesse momento, teria selado a inverosimilhante justiça feita pelas mãos de uma família marcada pelas cicatrizes de uma antepassada. Contudo, o fascista usou o suicídio coletivo das Catarinas para se reapossar do poder.

O discurso final do fascista é a coroação da retórica nauseabunda dos arautos da extrema-direita que despontou em Portugal. O público intervém amiúde: “mata-o”, impetrando ao rapaz que matou toda a família e que era espetador – distante – da verborreia acalorada do fascista. “Mata-o!” Sobrou esta mensagem: o fascista não foi morto quando houve oportunidade. A beleza do ato não se consumou. O fascista pôde continuar a ser o que sabe ser: fascista. Os fascistas não merecem ser poupados à morte, não respeitam a vida e a liberdade. Mas tão-pouco os agentes justicialistas respeitam a liberdade. Concluo eu: é tão fascista o fascista que mata fascistas como o fascista que é morto por ele.

Abjuro o sebastianismo dos radicais de direita que monta no descontentamento popular e cresce na competição eleitoral. E se estes párias chegarem ao governo com o consentimento da maioria dos votantes (a pergunta foi mal respondida na peça)? Tenho medo dos fascistas que se aproveitem da democracia para a distorcer, ou até (no pior dos cenários) para a liquidar. Como tenho medo dos justiceiros que se autoinvestem de poderes heurísticos para decantar a paisagem política, como se fossem os executores da defenestração dos que ameaçam roubar a democracia. A certa altura, eu, que considero repugnante o estereótipo central da peça (o “fascista”), senti-me como o fascista que era presa da família de Catarinas.

O teatro pode ser político. Mas escusa de atear fogueiras antes do tempo. E escusa de ser condescendente com um justicialismo tão primário como as afeções que contaminam os fascistas. Foi pena que o enredo não tivesse feito uma incursão pela filosofia moral para levantar duas interrogações: como justifica o “não fascista” que mata fascistas a sua prerrogativa? Aceitar que o “não fascista” possa matar fascistas não é equivalente ao fascista que se considera legitimado para tirar a vida aos que se lhe opõem?

Agora, é a vez do meu oráculo: do radicalismo que se antagoniza ao radicalismo nos seus antípodas, iremos a caminho de radicalismos de sinal contrário que se autoalimentam, numa interminável espiral de crispação, retórica agressiva e confronto físico e morte. Que os fascistas não valorizam o outro, é consabido. Nesta peça, ficou claro que os que matam fascistas também não dão valor ao outro. Também não dão valor à vida humana. Não são diferentes. São tão fascistas como eles, na sonegação de valores inerentes à convivência democrática.

A desordem nunca é um princípio de justiça: conduz à anomia. E na anomia, salvam-se os mais fortes; os que tiverem armas nas mãos; os que ganharem, num certo momento, o monopólio da palavra.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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