Frugais receiam esbanjamento e corrupção com os fundos para a recuperação da crise

Estudo do European Council on Foreign Relations mostra que descontentamento na Áustria, Dinamarca, Finlândia, Países Baixos e Suécia não é com o valor do pacote financeiro mas com a possibilidade de o dinheiro ser mal gasto nalguns Estados-membros.

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Na cimeira de Julho, o holandês Mark Rutte liderou o bloco dos chamados países frugais JOHN THYS/EPA

Há uma forte razão para os governos dos cinco países que compõem o grupo dos chamados “frugais” da União Europeia fazerem finca-pé na aplicação de um regime estrito de condicionalidade entre a distribuição dos fundos europeus e o respeito pelas normas do Estado de direito: a pressão da opinião pública. Na Áustria, Dinamarca, Finlândia, Países Baixos e Suécia, quase metade da população receia que o dinheiro destinado à recuperação da crise económica da pandemia possa ser “esbanjado” a alimentar cliques corruptas em alguns Estados membros, como revela uma sondagem do European Council on Foreign Relations sobre as atitudes em relação à União Europeia, divulgada nesta quarta-feira.

Um amplo estudo de opinião, realizado nesses cinco países e ainda na Alemanha, França e Polónia, serviu de base ao novo relatório produzido pelo think tank europeu sobre “Como soltar os entraves do debate sobre frugalidade após o acordo de recuperação” que foi negociado pelos líderes europeus depois um braço de ferro que se prolongou por cinco dias em Julho, e prevê um pacote financeiro de 1,82 biliões de euros para combater a crise provocada pela pandemia de coronavírus. “Histórico”, bradaram nessa altura os líderes europeus, excepto o primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte, que destoou nos elogios ao acordo.

As conclusões do estudo do ECFR demostram que, apesar de se terem gasto rios de tinta a escrever sobre a recusa intransigente dos governos do grupo dos frugais — que são também os contribuintes líquidos para o orçamento comunitário — em aumentar o montante global do quadro plurianual, o rótulo de “somíticos” e “forretas” atribuído a esses cinco países não corresponde totalmente à realidade. Ou pelo menos, não à da esmagadora maioria da população: afinal, quase oito em cada dez dos inquiridos nesses Estados membros discordam da afirmação de que “a UE gasta demasiado dinheiro” e de que é preciso cortar nas transferências para os cofres de Bruxelas.

“A sondagem [que foi conduzida na segunda quinzena de Outubro] revela que o público nos chamados “países frugais” está mais preocupado com a má utilização dos fundos pelos beneficiários líquidos do orçamento comunitário e que há uma crença generalizada de que os seus líderes não são capazes de moldar a futura direcção da UE”, sublinha Susi Dennison, directora do programa European Power do ECFR e uma das autoras do relatório. Ou seja, o “problema”, na opinião de 40% dos austríacos, holandeses e suecos, não está no valor do financiamento da UE, mas antes no risco de esbanjamento e corrupção associados à forma como determinados Estados-membros gastam o dinheiro europeu.

Populistas à espreita

Para a investigadora, “as alegações de corrupção, e os repetidos confrontos com a UE sobre questões de Estado de direito, minaram a confiança da sociedade e suscitaram receios de que a UE já não seja uma equipa que partilha um compromisso com os valores democráticos e a responsabilidade”. E essa percepção generalizada, se não for confrontada pelos líderes políticos dos países frugais, pode acabar por ter “efeitos profundos na natureza do projecto europeu”, alertam os especialistas do ECFR, que chamam a atenção para a recente recuperação da popularidade do político de extrema-direita holandês Geert Wilders e de partidos nacionalistas e eurocépticos como os Verdadeiros Finlandeses ou os Democratas Suecos.

Estes movimentos políticos, que têm na sua razão de ser uma perpétua oposição à ideia de integração que alimenta o projecto europeu, não estão a conseguir “explorar” a crise pandémica para instigar o ressentimento e cavar um fosso entre “eles e nós”, como aconteceu durante a crise do euro, em 2008, ou a crise migratória de 2015. Como se lê no relatório, “os populistas, e em particular a extrema-direita, tentaram culpar a globalização descontrolada pela propagação do coronavírus”, para defender que os países se fechassem sobre si mesmos. Mas pelo menos “até agora, o poder dos seus argumentos tem sido limitado pelo reconhecimento, por parte dos europeus, da necessidade de partilhar a soberania e os recursos para melhor responder à crise”, constatam os autores do estudo.

As respostas ao inquérito mostram que, à semelhança de outros Estados-membros, também nos países ditos “frugais” prevalece a opinião de que “a UE tem um valor acrescentado e desempenha um papel na promoção dos interesses nacionais”, que vai muito para além da esfera económica. A liberdade para viver e trabalhar noutro país e as vantagens do mercado único; a cooperação na segurança, Justiça, combate ao terrorismo e protecção de guerras e conflitos, e ainda o comércio internacional, são as áreas onde os inquiridos apontam uma maior contribuição da UE na defesa dos seus interesses.

Porém, os resultados também sugerem que a forma como foi enquadrado o debate político em torno do pacote europeu de resposta à crise fez alguma “mossa” nos países frugais: apesar de não se sentirem globalmente descontentes ou insatisfeitos com o resultado das negociações, os inquiridos expressaram sentimentos contraditórios em relação ao acordo para o fundo de recuperação, que no espectro negativo variam entre a preocupação (22%), frustração e mesmo raiva, e no lado positivo indica alívio, entusiasmo e optimismo (22%). O fiel da balança (40%) pende para o campo mais negativo.

Os números mostram ainda que os cidadãos ficaram com a impressão de que as “conquistas” negociais (os frugais mantiveram o seu direito aos chamados “rebates” do orçamento e reduziram o montante das subvenções no fundo de recuperação) foram alcançadas à custa de “concessões” políticas difíceis de aceitar — o que explica a sua convicção de que o poder de influência do seu país está diminuir ao nível europeu. Essa é a opinião de quatro em cada dez dos inquiridos, e uma “posição muito evidente entre aqueles que se dizem alinhados com os partidos eurocépticos”, tanto nos cinco países frugais como também nos apoiantes da AfD da Alemanha, do Reagrupamento Nacional em França e da Confederação Liberdade e Independência da Polónia.

Perante este cenário, os analistas do ECFR vêem como lógica — e também oportuna — a defesa do novo mecanismo de Estado de direito que protege a integridade do orçamento da UE. “Uma área em que os eleitores revelam uma grande vontade de ver progressos é o combate ao desperdício financeiro e à fraude e corrupção no uso dos fundos comunitário”, diz o relatório. Ao assumirem a liderança, enfatizando a “importância da independência judicial em relação às ameaças sistémicas contra a democracia”, e da “vigilância das transferências financeiras para os países onde há violações do Estado de direito”, os países frugais poderão prestar um serviço à União, retirando força aos argumentos dos populistas, e provando às suas audiências domésticas que as suas preocupações (e aspirações) são reflectidas nas políticas de Bruxelas, consideram os autores do relatório.

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