O poder das minorias

A solidez da construção política nos Açores só é comparável com a natureza vulcânica do solo em que está instalada. Dir-se-á, impossível ter sucesso? Não há impossíveis e cada um escolhe o seu caminho. Mas como a História nos ensina muito, recomendo que percam algum tempo a estudar os governos italianos do pós guerra, sobretudo nos anos 60 e 70.

Costuma dizer-se, e é verdade, que a democracia é o regime em que prevalece a vontade da maioria. Há, no entanto, mesmo em democracia, situações em que certas minorias têm um peso e uma influência desproporcionados com a sua expressão numérica.

A legislatura anterior foi dominada por um acordo político maioritário designado na gíria por “geringonça”. Sumariamente, o governo foi exercido por um único partido minoritário que, por meio de acordos separados e autónomos de incidência parlamentar, conseguiu um apoio maioritário na Assembleia da República.

É sabido que as coligações no nosso regime político não costumam ter grande solidez, estando sujeitas a crises internas recorrentes que ameaçam a sua subsistência. A “geringonça” foi uma coligação mais original do que tem sido hábito e tendencialmente ainda mais frágil, pois não envolvia entendimentos entre todos os partidos abrangidos e o teor dos compromissos assumidos por cada um deles não era o mesmo.

Apesar de toda a sua fragilidade intrínseca, durou. E, para além de diversas crises que também lhe aconteceram, durou toda a legislatura. Não foi obra do acaso, mas não me vou debruçar sobre as razões que explicam tal duração.

Aceitando as categorias tradicionais de análise política, a “geringonça” foi uma coligação de esquerda. Não só porque todos os partidos nela representados se consideram de esquerda, como porque alguns deles têm posições políticas bastante extremadas, sobretudo no que toca às políticas externa e de defesa nacional, com a rejeição das opções tradicionais do Estado português, como no que respeita ao regime económico, com uma prevalência quase sufocante de modelos coletivistas.

Todavia, o partido maioritário da coligação, o Partido Socialista, a quem coube em exclusivo o governo, definiu de modo bastante nítido e autónomo o perfil da governação. Teve seguramente que negociar diversas medidas com os seus parceiros de esquerda, com certeza que teve de fazer cedências, provavelmente governou mais “à esquerda” do que faria sozinho, mas nunca abandonou um perfil equilibrado e dialogante com a sociedade, nem se deixou influenciar por minorias ruidosas, seja nos salões, seja na rua, e mais ou menos “esclarecidas”. A sua governação foi bastante centrista, fiel à sua história política no que respeita a opções fundamentais e equilibrada nos domínios económico e social. E se há símbolo desse perfil, para mim o maior foi a escolha do ministro das Finanças português (ou seja, de um país saído há muito pouco tempo de um processo de resgate financeiro) para presidente do Eurogrupo. Podemos dizer que dentro da maioria parlamentar prevaleceu o partido maioritário (a maioria dentro da maioria).

A “geringonça” era uma coligação frágil e de curto prazo. Os seus objetivos pactados extinguiram-se antes mesmo do final da legislatura. Podemos considerar que a governação foi excessivamente dominada por preocupações de curto prazo, condicionada pelos acordos celebrados e pela vontade de sobrevivência, mas devemos reconhecer que talvez não houvesse grande margem de manobra para fazer substancialmente diferente, tendo presente o brutal peso do endividamento, público e privado, na economia portuguesa.

A atual legislatura trouxe-nos um quadro diferente. A “geringonça” não foi renovada, sem grande surpresa. Sobreveio a brutal crise em que estamos submersos e esta sim foi a grande surpresa. Confrontado com a necessidade de aprovar o Orçamento do Estado para 2021, o primeiro-ministro decidiu desenterrar a antiga coligação. Não teve sucesso, apesar dos lancinantes apelos dele e de terceiros (Presidente da República). Só o PCP se dispôs a dar o benefício da dúvida e lá se absteve na votação na generalidade. Todos os partidos e deputados que se abstiveram nesta votação, permitindo a aprovação da Proposta de Orçamento com os votos do PS, apresentaram os respetivos cadernos reivindicativos e ameaças. Todos disseram que alterariam o seu voto, caso aqueles não fossem contemplados. Deste bloco, os 12 votos do PCP e dos Verdes são o fiel da balança.

Portugal tem experiência de negociações orçamentais desequilibradas, em que um pequeno grupo exerce um poder desproporcionado e de legitimidade política duvidosa. O paradigma é o chamado orçamento limiano, em que um deputado fez valer o seu voto para obter contrapartidas faraónicas para a sua terra (tão faraónicas que nem executadas foram na totalidade).

No atual quadro negocial, o poder deixou de estar do lado da maioria e transferiu-se para as minorias que condicionam a aprovação do OE, em particular para a minoria maior, ou seja, o bloco PCP/Verdes. Muito estranho seria que estes não usassem a posição privilegiada em que foram colocados para esticar o mais possível os seus ganhos de causa e obter cedências que noutras circunstâncias não teriam. O Governo, que no início do processo de negociações foi acusado de fazer chantagem sobre os demais parceiros, parece agora estar na posição de chantageado! Está por saber quais serão os limites das exigências de uns e das cedências de outros. Agora é evidente que o poder passou da maioria para as minorias.

A análise desta situação permite-me fazer um exercício de prognose!

Nos Açores constituiu-se recentemente nova solução governativa, a que já foi dado o nome de “caranguejola”. A “caranguejola”, negociada em tempo recorde para a dificuldade do exercício, consegue ser mais desengonçada do que a “geringonça”. Senão vejamos. O governo não será monopartidário mas ele próprio assente numa coligação de três partidos. Sabemos como as coligações tendem a ser instáveis. Todavia, a coligação é minoritária e conseguiu atingir a maioria parlamentar por via de acordos separados entre um dos partidos (o maior) e mais duas forças políticas, de modo a atingir o número mágico de 29 votos no Parlamento açoriano. Ou seja, temos um acordo que envolve cinco formações políticas e pelo menos três compromissos separados e diferentes, sendo o PSD Açores o único elemento comum em todos eles, ou seja, o eixo da “caranguejola”. Quem gostar de fazer puzzles em noites de insónia deve adorar o exercício… A solidez desta construção política só é comparável com a natureza vulcânica do solo em que está instalada. Dir-se-á, impossível ter sucesso? Não há impossíveis e cada um escolhe o seu caminho. Mas como a História nos ensina muito, recomendo que percam algum tempo a estudar os governos italianos do pós guerra, sobretudo nos anos 60 e 70.

O que eu pretendo sublinhar é que quando, um dia destes, o futuro presidente do Governo Regional dos Açores se sentar à mesa para fazer passar as suas propostas no Parlamento, o poder negocial estará do lado das minorias, sobretudo do partido com mais peso dentro das minorias. Um voto será suficiente para aprovar ou rejeitar um orçamento, por exemplo. A tendência natural é fazer cedências às minorias que aceitou como parceiros, pois de outro modo nem sequer fazia sentido celebrar acordos prévios.

Importa, todavia, salientar que este quadro pode ou poderá não se concretizar. Um processo de negociações é algo complexo e pode ser influenciado por muitos fatores. O partido maioritário pode alterar (ou tentar) as condições da negociação. Pode não se deixar condicionar e partir a corda. Pode definir princípios e soluções de que nunca transija. Pode entender que uma crise política é mais saudável que uma sobrevivência ligada ao ventilador. Sabemos bem como estas atitudes são pouco comuns!

Ao terminar este exercício de sofrível análise política, não posso deixar de me colocar no lugar dos decisores políticos e dizer: “Que inutilidade! Mais um treinador de bancada! Venha cá e faça diferente!” Tentador, sem dúvida. Mas a utilidade da análise política não é substituir-se à decisão política. É mostrar aos decisores os becos (sem saída) em que se podem meter ou como os evitar e analisar os caminhos mais eficientes para alcançar os objetivos pretendidos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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