2020: números da época de incêndios “não foram simpáticos”, mas ficaram aquém do pior cenário

Após dois anos de decréscimo, relatório do ICNF indica que Portugal registou incrementos nos valores de área ardida, no número de incêndios de grande dimensão e na área média consumida em cada ignição. No que toca ao número de ocorrências, este atingiu o número mais baixo desde 2015.

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Rui Oliveira

Em ano de crise sanitária, o comportamento dos incêndios florestais vislumbrava-se uma incógnita. As restrições à circulação e os sucessivos adiamentos dos prazos para limpeza de terrenos, ambos motivados pela pandemia da covid-19, levaram muitas entidades a mostrar apreensão face aos meses que se seguiam, enquanto outras mostravam confiança no trabalho desenvolvido no terreno nos meses frios, obedecendo a uma lógica de gestão a longo prazo. Terminado o período crítico de incêndios, e com os dados oficiais do Instituto de Conservação da Natureza e da Floresta (ICNF) divulgados, no 8º Relatório Provisório de Incêndios Rurais de 2020, publicado no website do organismo, é já possível avançar com conclusões preliminares de uma época de fogos que teve como consequência primária a morte de cinco bombeiros durante acções de combate.

Entre 1 de Janeiro e 15 de Outubro de 2020, Portugal registou 65 887 hectares de área ardida, os quais se distribuem por povoamentos florestais (31 803 hectares), matos (27 824 hectares) e terrenos agrícolas (6260 hectares). Trata-se do número mais elevado desde o fatídico ano 2017, que acabaria por ditar o início de uma tendência de descida em 2018 e 2019: 44 078 e 41 850 hectares ardidos, respectivamente. No que diz respeito ao número de incêndios rurais registados, o presente ano tem o número mais baixo desde 2015: 9394. Um valor muito abaixo da média do decénio (2010-2019), que apontava para 16 874 incêndios nos respectivos períodos homólogos (1 de Janeiro a 15 de Outubro).

A área queimada nos fogos rurais registados em Portugal também subiu em 2020 para números anteriores a 2017. Em média, cada incêndio fustigou 7 hectares de terreno, um número inferior à média da última década, 7,5 hectares. De acordo com os critérios do ICNF, consideram-se “grandes incêndios” aqueles que igualem ou ultrapassam os 100 hectares de área ardida. Em 2020, registaram-se 65 nesta categoria, originando 55 218 hectares de área ardida (84% do total de área ardida). Ainda assim, ocorreram também 11 incêndios que resultaram, individualmente, em mais de mil hectares queimados. Nos dois anos anteriores, apenas três fogos atingiram tal dimensão: um em 2018 e dois em 2019.

Na lista de incêndios rurais com maior dimensão, figuram os de Proença-a-Nova (decorrido entre 13 e 16 de Setembro), Oleiros (de 25 a 30 de Julho) e Torre de Moncorvo (6 a 8 de Agosto), com 14 878, 5590 e 2721 hectares de área ardida, respectivamente. Esta informação tem naturalmente repercussões na distribuição da área ardida por distritos e concelhos. Castelo Branco, com 24 255 hectares de área ardida, destaca-se, seguido de Bragança (6522 hectares) e Vila Real (5897 hectares). No que diz respeito a concelhos, os três primeiros lugares são ocupados por Oleiros (12 083 hectares queimados), Sertã (3671) e Proença-a-Nova (3395), todos no distrito de Castelo Branco.

Na distribuição temporal, Julho foi o mês com mais incêndios rurais, 3073, enquanto Setembro registou a maior área ardida, 26 600 hectares. Estes números representam um desvio face aos registos médios da última década, que apontavam Agosto como o mês com maior número de ocorrências e maior área ardida.

Balanço da área ardida em linha com o “histórico português"

Perante estes dados, Paulo Fernandes, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e membro do Observatório Técnico Independente dos incêndios florestais nomeado pelo Parlamento, destaca a diminuição considerável do número de ocorrências, “uma tendência bem visível nas estatísticas e que se acentuou nos últimos anos, desde 2018”. Já no que diz respeito à área ardida, o investigador considera que o registo está em linha com o “histórico português”. “É um valor que noutros países seria muito alto, mas em Portugal, tipicamente, arde mais do que isso. O nosso ano médio está entre os 100 e os 120 mil hectares [de área ardida], portanto estamos um bocadinho acima da metade”.

Para a concretização (e justificação) destes números é importante considerar as variantes meteorológicas que muitas vezes influenciam o curso dos maiores e mais violentos incêndios – como o de Proença-a-Nova, o de Oleiros e o de Torre de Moncorvo. Através de uma breve análise do mapa de severidade meteorológica, Paulo Fernandes conclui que 2020 “foi um ano fácil e pouco favorável ao fogo até meio de Julho”. A partir deste marco, Portugal registou “dias de perigo meteorológico de incêndio bastante elevado”. “Não foi um período contínuo, homogéneo ou no país todo, mas no interior centro e sul houve dias francamente maus.”

De facto, dois dos três maiores incêndios de 2020 (ocorridos na região do Pinhal Interior) parecem ter beneficiado de condições meteorológicas extraordinárias (tais como temperaturas elevadas, humidade relativa baixa e ventos fortes), associadas a terrenos com configurações favorecedoras da propagação dos fogos, a começar pela ocupação maioritária e contínua de “espaço florestal”. “Há pouca agricultura e, consequentemente, poucas barreiras.” A própria topografia “montanhosa, mas não excessivamente”, é tida como “perfeita para grandes incêndios”. Como tal, se uma ignição – fenómeno pouco comum nesta região quando comparada com outras – escapar ao “combate inicial, há uma grande probabilidade de se tornarem grandes incêndios, devido ao contexto do território”.

Números “poderiam ter sido bem piores"

Para a Forestis – Associação Florestal de Portugal, os números relativos à época de incêndios de 2020, “não sendo números simpáticos, poderiam ter sido bem piores”. “A redução do número de fogos com origem em queimadas e fogueiras para eliminar resíduos agrícolas, a origem mais frequente das ignições, foi importante para esse sucesso.” Segundo a associação, que representa os proprietários de florestas privadas e comunitárias, a pandemia surtiu efeitos contraditórios. Se, por um lado, “a conjuntura atípica pode ter moderado o factor de risco designado por ‘incendiarismo’”, devido à redução da “mobilidade dos incendiários e a propensão para o seu comportamento perverso”, por outro, as restrições representaram uma dificuldade acrescida no “trabalho dos sapadores florestais”, conduzindo “à redução da sua produtividade”.

Numa análise mais abrangente e a longo prazo, Luís Braga da Cruz, engenheiro e presidente da direcção da Forestis, afirma que, “quanto à capacidade de redução de material combustível, ainda estamos muito longe de uma situação equilibrada. A pandemia não terá ajudado, mas está longe de ser a grande causa.” Como tal, defende “outras formas para reduzir o combustível e custear os encargos com as limpezas”: “Temos de se encontrar um compromisso, […] não esquecendo que uma boa gestão florestal é sempre a melhor forma de reduzir o risco de fogo.”

Florestas “têm de ser economicamente viáveis"

Não incluída na lista de efeitos a curto prazo que decorrem da passagem de um incêndio florestal, a destruição de habitat e de biodiversidade é um factor pouco debatido. Ao longo dos últimos anos, a World Wide Fund for Nature (WWF) tem dado eco à questão, sobretudo ao nível da libertação de dióxido de carbono resultante dos eventos. Em declarações ao PÚBLICO, Rui Barreira, engenheiro e presidente da associação, assume que as métricas utilizadas não permitem, para já, assinalar as consequências ambientais dos incêndios deste ano. Ainda assim, um primeiro olhar indica “que arderam zonas que não são zonas tradicionais de produção florestal, de carvalhais e de outros tipos de povoamento, o que terá provocado o maior impacto em termos de biodiversidade.”

Ainda neste âmbito, Rui Barreira coloca o ónus do sucesso da floresta portuguesa na gestão e no ordenamento do território e não nas espécies, o que facilitaria processos como a “limpeza das propriedades, a selecção das varas ou a criação de descontinuidades que permitam depois combater os incêndios e minimizar os seus estragos”. No entanto, a aposta numa floresta de produção pode deitar por terra esta aposta. “Têm de ser economicamente viáveis – caso contrário são abandonadas. Uma floresta abandonada, que não tem gestão, é um pequeno barril de pólvora.”

O trabalho da WWF enquanto associação ambientalista consiste em “repensar a floresta, a paisagem e criar formas de valorizar outras actividades económicas”. O objectivo será, no futuro, “criar descontinuidades nas grandes manchas florestais e potenciar outro tipo de produtos que advenham dessas mesmas manchas”. Para já, aquilo que dá como certo é “a mudança de mentalidade, dos meios de combate e de estrutura, que permite proibir determinadas actividades na floresta (e até punir) nos períodos de risco elevado”.

Como tal, Rui Barreira não se mostra surpreendido que “em termos de número de incêndios, de ignições, exista uma redução”, que atribui a uma “gestão proactiva” e considera “louvável.” Quanto à área ardida, a reacção é oposta. “Estamos novamente com uma tendência da área ardida que remonta ao pré-2017, estamos novamente a entrar no ritmo, pelo que não estou muito optimista.” Por outras palavras, “o dispositivo está a começar a funcionar melhor, estamos a conseguir prevenir as áreas ardidas e há uma melhor gestão. Por outro lado, ainda não se mudou a paisagem o suficiente para conseguirmos ter uma floresta mais avançada”, conclui.

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