A câmara de Aznavour, a hora de Trump e a honra de termos Vítor Aguiar e Silva

Um filme, umas eleições e um prémio, este atribuído muito justamente a uma figura ilustre da língua portuguesa.

Estreia-se esta quinta-feira nas salas um curioso documentário: Aznavour por Charles ou, no (mais acertado) título original, Le Regard de Charles. Trata-se de uma montagem de anos e anos de filmagens feitas por Charles Aznavour, ao correr do tempo e do mundo, com uma câmara de filmar Paillard que Edith Piaf lhe ofereceu em 1948. Nunca mais se separou dela e filmava tudo o que podia e lhe interessava: lugares, coisas, amigos, amantes. Foi uma passagem alegórica do Théâtre du Petit Monde, onde ele se estreou aos nove anos como cantor e comediante (nascido Shahnour Vaghinagh Aznavourian, em Paris, em 22 de Maio de 1924, era filho de emigrantes arménios, um cantor e uma actriz) para o Grande Teatro do Mundo. Só que, nessa altura, ele era já um grande senhor da canção e esse estatuto foi passaporte suficiente para lhe garantir um lugar de voyeur bem-vindo. “Há quem filme para se manter afastado”, diz Romain Duris no filme, falando por Aznavour, no papel de narrador. “Quanto a mim, eu filmo para me aproximar. Sou filho de emigrantes. Como todos os que procuram uma terra de acolhimento, somos todos o fim do mundo, somos todos outra música.”

Apesar de Aznavour não ter mostrado essas filmagens a ninguém durante muitos anos, o filme não é propriamente alheio à sua decisão e ao seu olhar. Pouco antes de morrer (na sua residência no Sul da França, a 1 de Outubro de 2018, com 94 anos), o cantor trabalhou com o realizador e produtor francês Marc di Domenico na escolha e na edição das imagens que viriam a dar corpo ao filme – que é, aliás, assinado por ambos, Aznavour e Domenico. E isso reforça a relevância do título francês: porque é o olhar de Charles que aqui se impõe, primeiro como “homem da câmara de filmar”, depois como realizador do material filmado.

Estreado em Portugal no IndieLisboa 2020 e apresentado em duas sessões (no Capitólio e no São Jorge, em fins de Agosto e início de Setembro), Aznavour por Charles foi apresentado assim num texto de Mário Lopes: “Aznavour registou paisagens e rostos, gente anónima, as mulheres da sua vida, as estrelas como ele. Marc di Domenico mergulhou nesse imenso arquivo e deu-lhe uma forma. Romain Duris fez-se Aznavour e deu voz ao seu pensamento. O resultado é um filme revelador. O observador torna-se a coisa observada, e vice-versa.” Está em poucas salas, mas quem quiser vê-lo tem duas da UCI (Arrábida Shopping, Porto, e El Corte Inglés, Lisboa), o City Alvalade (Lisboa) e o Cinema da Villa (Cascais).

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Charles Aznavour com a sua câmara de filmar, numa imagem do documentário DR

Se Aznavour esteve durante anos de olhos postos no mundo, o mundo está agora durante mais uns dias de olhos postos (mais correcto será dizer: fixados) na América. Não porque se esperem milagres, mas porque será um alívio para milhões de pessoas ver eclipsar-se da Casa Branca e dos ecrãs (que no-lo atiram à cara todos os dias) um estranho ser que não deixará saudades. Demagogo, mentiroso compulsivo, falhado magnata, com pose de rufia e um vocabulário fraquíssimo (como bem demonstra, a partir de muitos materiais de arquivo, o documentário The Choice 2020, de Michael Kirk, ele repete hoje, a qualquer pretexto, os mesmos termos vazios que sempre usou desde a adolescência, como “very strong”), vê-lo chegar à presidência dos Estados Unidos pareceu uma obra de ficção. Ainda hoje parece, quatro anos depois. Já que nada melhorou nele, pelo contrário: piorou. Porque se encheu de vento com as rédeas da maior potência mundial nas mãos e, como ele gosta, uma horda submissa de bajuladores em volta. Que os votos permitam agora que o mundo oiça, e bem alto, a frase que ele tanto adorava repetir no seu televisivo O Aprendiz: “Está despedido!”

Enquanto isto se passa, o Prémio Camões veio recordar-nos que é uma honra ter entre nós um pensador como Vítor Aguiar e Silva. Terceiro ensaísta a ser distinguido com tal prémio, depois de Eduardo Lourenço (em 1996) e Antonio Candido (em 1998), a sua erudição e conhecimento só rivalizarão com a sua modéstia. Internacionalmente reconhecido, é autor “de uma Teoria da Literatura (1967) estudada por sucessivas gerações de universitários e de um conjunto de decisivos ensaios camonianos”, como escreveu Luís Miguel Queirós no PÚBLICO. Se tivessem seguido os seus conselhos quanto ao Acordo Ortográfico de 1990 (assinou o parecer desfavorável da Comissão Nacional da Língua Portuguesa, na qualidade de seu coordenador, em 30 de Junho de 1989; e foi um dos subscritores, em 2008, da petição Em Defesa da Língua Portuguesa contra o Novo Acordo Ortográfico, ao lado de Vasco Graça Moura e de muitos outros intelectuais, entregue no Parlamento – que a discutiu e arquivou! – com 115 mil assinaturas), nunca teríamos chegado ao caos ortográfico em que suicidariamente nos mergulharam. Que este prémio seja um alerta, também para isso.

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