A língua vai bem, obrigado, excepto (ou será exeto?) algumas palavrinhas

Com tanta asneira, talvez possamos mesmo abolir a escrita, esse doce desejo inconfessado de tantos analfabetos.

Ao primeiro sinal, ninguém terá dado muita importância. Errar qualquer um erra, além do mais a coisa estava no princípio. Mas depois surgiu outro, outro e mais outro, e foi aí que se fez luz: não eram erros, eram exercícios de criatividade linguística. À sombra do dito novo Acordo Ortográfico (o de 1990), uma palavra como excepto, que até 2009 não incomodava ninguém, passou, por intermitentes devaneios, a escrever-se (como se verá pelas imagens, todas elas de sinais de trânsito e todas elas reais, dos mais variados cantinhos de Portugal) “exceto” (como mandará o dito acordo, que embirra com pês ao lado de tês), “exepto”, “excepo”, “execto” ou “exeto”.

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E note-se que ainda não foram usadas todas as possíveis variantes. Ainda falta “exepo”, “expto” ou mesmo “xpto”, termo aliás muito em voga quando se quer designar algo, digamos… especial. E é isso que estes devaneios são: algo especial. Que em lugar de serem criticados, ou apontados como erros intoleráveis, ainda hão-de receber prémios de criatividade e, quem sabe, um subsídio do Ministério da Cultura.

Não só estes. Também o pacto por “pato” (o que permitirá, de futuro, alguém dizer: “eu vou assinar esse pato”, mas também “eu assino o peru” ou mesmo “assinarei a galinha, claro!”), o impacto por “impato” (que é uma espécie de pato mais inchado), a secção por “seção” (o que, num enlevo poético, tanto permite à empregada do supermercado dizer “esta seção vai fechar às oito” como ao escritor declarar “encerrada a seção”, economizando nos ésses), a excepção por “exceção” ou mesmo “exeção, que já se viu por aí escrito; e tantas, tantas outras palavras que, ceifadas nesta poupança, nos hão-de trazer lustrosos benefícios. Claro que na fala já as reduzimos, muitas vezes sem dar por isso, e às vezes dando por isso e até gostando disso: é ver o prazer com que certas criaturas, avessas ao casamento de consoantes, pronunciam “óvio” e “oviamente”, dando tonalidades ovíparas a palavras tão… óbvias.

Mas na escrita ainda estamos a dar uns tímidos passos, que requerem ousadia. Por exemplo: há dias, li “circunspeto”. Podia ser um espeto circular, naturalmente, mas era mais ardiloso que isso, era a palavra circunspecto escrita na nova grafia. Ou não? Sabendo que o C antes do T deve ser lido – é o Dicionário da Academia, sancionado por Malaca, que o assegura (1) –, como escrever então “circunspeto”? Com criatividade, claro está. Basta ver o Vocabulário Comum do IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa), clicar nas bandeirinhas portuguesa e brasileira e ver que, sim senhor, há circunspecto e “circunspeto”, à escolha do freguês.

E os outros, o que dizem? Coisa diferente. O Vocabulário da Academia (a mesma que, no seu Dicionário, sublinha a leitura obrigatória do dígrafo CT nesta palavra), perante a busca de “circunspeto”, diz apenas: “Nenhum resultado encontrado”. O Priberam brasileiro é que esclarece tudo, na entrada “circunspeto”: “1. Que tem circunspecção. 2. Que é feito com circunspecção ou dela provém. Grafia no Brasil: circunspecto. [Portugal] Variante de circunspecto após o Acordo Ortográfico de 1990.” Vêem como a criatividade compensa? Tínhamos uma palavra que era igual em Portugal e no Brasil, na escrita e na fala, e agora temos duas em Portugal, com a vantagem “óvia” de podermos dizer “circunspéto” ou “circunspêto”, que ainda acabará por ser escrita como “circunpeto” ou até “circuneto”.

Não é isto cultura? Não é isto criatividade? Não é isto que fará da língua portuguesa a mais versátil de todas as do planeta? Lembram-se decerto que O’Neill escreveu, num dos seus poemas muito citados (“Portugal”, precisamente): “ó Portugal, se fosses só três sílabas/ de plástico, que era mais barato!” Pois podemos e devemos ir mais além. E das três sílabas passar a apenas três letras: PTL, ou PGL, ou qualquer coisa assim como um borrão. Nesse dia sim, teremos cumprido o desiderato das mais modernas reformas ortográficas. E talvez possamos mesmo abolir a escrita, esse doce desejo inconfessado de tantos analfabetos.

1) Muito criticado à data, o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa foi publicado com a grafia de 1945 em 2001… onze anos depois da assinatura do acordo ortográfico de 1990. E em nome de Malaca Casteleiro, por sinal dado com o “pai” do acordo de 1990. Faz confusão? Nenhuma. Era preciso cumprir um pacto (seria um “pato”?) com os financiadores e vender. Hoje, ainda por aí anda, pelas livrarias. Retomá-lo, apesar das muitas falhas que tem, é fácil e talvez acabasse com a “selva” ortográfica em que vivemos.

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