Edith Piaf, uma voz que cantava com toda a vida dentro

Nasceu faz hoje 100 anos aquela que continua a ser “a voz de França”. Edith Piaf teve uma carreira em que cantou sempre com toda a sua desafortunada existência. As comemorações do centenário querem que a conheçamos melhor, para que a oiçamos mais completa.

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Edith Piaf fotografada em Nova Iorque no dia 1 de Abril de 1950 AFP / INTERCONTINENTALE / STRINGER
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Carregando mais ou menos no mito à sua volta, Edith Piaf foi uma cantora que se fez na rua. Possa ou não (há versões contraditórias) ter por lá nascido há 100 anos, foi certamente no desabrigo e numa existência penosa e sofrida que alimentou o seu canto quando, na verdade, pouca comida tinha para lhe garantir a sobrevivência. “As melodias mais intensas que me arrepanham as tripas”, disse a cantora ao France Soir em 1953, “são as da rua. Não me rebaixo para as receber, saltam-me para os braços, penetram-me, fazem-me soltar uma lágrima, gritar a minha alegria. Quem as escreveu? Quem as musicou? Ninguém sabe. Pertencem ao mundo, são uma família, são minhas.”

Nessa entrevista, recuperada agora no livro que integra a luxuosa caixa Edith Piaf 1915-2015, uma espécie de integral composta por 20CD com os seus temas obrigatórios, actuações no Olympia, no Carnegie Hall e gravações raras, Piaf fala ainda da sua “infância cruel”: “Passei fome, passei frio, a rua foi a minha educadora, fez de mim aquilo em que me tornei. O sofrimento foi a minha escola.” Piaf cavou, em criança e adolescente, uma relação oposta entre a sua vida e a sua arte: à medida que a sua existência se afundava um torvelinho de miséria e sofrimento, todo esse lastro era canalizado para uma fermentação artística que haveria de gerar a mais emblemática das vozes da música francesa.

Não espanta, assim, que ao adoptar um teatral tom típico da chanson dos anos 40 e 50 para cantar La France – enquanto a China se especializa nos têxteis, a Tailândia no arroz, a Suíça nas contas bancárias e a Nicarágua na cocaína, França distingue-se nas fotocópias, diz-nos a canção –, o gesto interpretativo da cantora francesa Camille no seu último álbum (Ilo Veyou, 2012) tenha sido tomado como uma piscadela de olho a Piaf. Camille bem tentou descentrar a opção de La Môme, alargando-a a uma marca da música francesa do pós-guerra, mas a verdade é que todos os ouvidos se sintonizaram na voz de La Vie en Rose.

Não custa a perceber que Piaf continua a ser o mais intenso farol da música francófona, a par de Jacques Brel, nessa característica fundamental da criação local que é a teatralização da palavra e a canção encarada como espaço de encenação de uma pequena história – Gainsbourg, por outro lado, continua extremamente vivo nos criadores actuais, mas por via de uma prática da canção enquanto ferramenta de charme e de sedução.

É fácil, aliás, encontrar um rasto de Piaf no cabaret desgovernado inventado por Brigitte Fontaine e documentado desde os anos 70 até hoje na sua pop avant-garde, ou na chanson rock que Olivia Ruiz hoje vai explorando. Georges Moustaki, eterno apaixonado da cantora que hoje faria 100 anos, disse em 2013, pouco antes da sua morte, que Piaf estava muito presente e que quando pensava “em Piaf e naqueles que nela se inspiram”, percebia “até que ponto ela se encontrava avançada – era a mais moderna”.

A diferença de vulto entre La Môme e as suas “seguidoras” é a espessura interpretativa que colocava em cada canção, convocando uma vida trágica (a sua) para o canto (fatalmente seu). Piaf, nascida em 1915 – quer-se crer que ou em plena rua ou debaixo da capa de um polícia; defende-se agora que terá acontecido em condições bem menos extremas, no Hospital de Tenon, graças à desmontagem peça a peça do mito pela biografia de Robert Belleret, editada em 2013 –, filha da cantora de rua Annetta Maillard (Line Marsa de seu nome artístico) e do artista de circo Louis Alphonse Gassion, terá passado os primeiros anos de vida com a avó paterna, Madame Titine, proprietária de um bordel em Bernay, na Normandia. Exagero ou não da construção do mito, indiscutível parece a sua atracção desabrida por ambientes boémios e hedonistas, e pela entrega aos excessos.

Daí que em cada canção marcada pelo sofrimento ou pela desgraça amorosa, La Môme pareça banhar-se nas suas águas dilectas, num cenário que não é tanto o de autocomiseração e muito menos de catarse. Nesses temas funestos, encontramos a cantora em paz com o seu mundo, de onde não parecia capaz nem interessada em sair. Oiça-se, por exemplo, Heureuse, tema de René Rouzaud e Marguerite Monnot com que se inicia a gravação do seu concerto no Olympia em 1955 (incluído na caixa agora publicada). Depois de uma apresentação efusiva e com um trecho musical que celebra a entrada em cena de uma estrela que tem a sala na mão desde o primeiro instante, Piaf abre a boca e, mesmo num tema chamado Heureuse, a sua felicidade parece um sonho distante, nem sequer uma memória, antes um desejo antecipado como falhado.

Liberdade de simplicidade

Descoberta por Louis Leplée numa noite de Outubro de 1935, a actuar à saída da estação de metro de Étoile, Edith Goussain é transformada em La Môme Piaf quando Leplée a apresenta pela primeira vez à cena artística parisiense no palco do cabaret chique Le Gerny’s, situado em plenos Champs Elysées. E desde logo a desculpa por Piaf não ter um vestido de noite apropriado para a ocasião, por se mostrar como faria a cantar por um par de tostões atirados na sua direcção numa qualquer esquina ou pela sua pouco treinada postura de espectáculo. Essa postura será mais tarde limada por Bruno Coquatrix, o empresário que durante décadas dirigiu o Olympia, corrigindo-lhe os espontâneos jeitos da rua e recorrendo, de início, a um truque trabalhado com uma costureira que se destina a enfarpelar a cantora num vestido com bolsos frontais onde possa esconder as mãos (que denunciam a sua ansiedade e falta de experiência de palcos). O objectivo é claro: a atenção tem de estar na voz e apenas na voz.

É a voz, naturalmente, que sustenta a lenda. São temas como La Vie en Rose, Non, Je ne Regrette Rien, Bravo, L’Accordéoniste, Padam, Padam ou Milord. A par da espantosa visitação da obra da cantora proporcionada por Edith Piaf 1915-2015, é essa lenda que a Biblioteca Nacional de França pretendeu também mostrar com uma exposição patente entre Abril e Agosto passado, em que reuniu centenas de documentos sonoros, visuais e escritos, numa tentativa de traçar “o destino de Piaf de cantora de rua tornada ídolo popular e ícone internacional”.

De cada vez que a vida de Piaf é exposta de uma forma mais profunda, de cada que se escava um pouco mais fundo na sua figura, aquilo que é devolvido é esta ideia de uma mulher que se tornou um símbolo da cultura popular francesa, produto de um período histórico muito específico e cujas características fundamentais de liberdade e simplicidade eram não uma conquista de longos anos de carreira, mas sim uma consequência natural da sua vida. A lição que constantemente tiramos e que hoje nos volta a ser oferecida é a de que em cada grande cantor todo o seu trajecto está implicado em cada interpretação. Edith Piaf não é excepção. É, aliás, um dos exemplos mais perfeitos de uma cantora que carregava toda a sua pesada história em cada verso que alguma vez se lhe ouviu.

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