Uma Piaf sem fim

Edith Piaf 1915-2015 é um perfeito objecto de devoção que entreabre um património inesgotável.

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No seu centenário, Edith Piaf é alvo de uma poderosa investida: uma edição-espectáculo, com copiosa documentação musical

Depois de um período em que Edith Piaf acumulou amantes (que tantas vezes fazia seus protegidos e tentava depois impor aos palcos gloriosos da chanson — entre eles, por exemplo, Yves Montand, alegadamente tão fabricado por La Môme que tudo esta controlava, das escolhas do reportório à cuidada selecção das roupas com que o cantor se deveria apresentar), foi tomada de amores ao conhecer, em Nova Iorque, o afamado boxeur Marcel Cerdan. Terá sido, diz-se e repete-se amiúde, o grande amor da sua turbulenta vida.

O encontro entre os dois, em 1946, acontece num momento de absoluto fulgor ascensional das carreiras de ambos, mas parece antecipadamente condenado pelo curso errante e fatídico de uma Piaf que cresceu na miséria, sobrevivendo a cantar nas ruas, incapaz de estabilizar em qualquer trabalho em que se metia, entregue a uma desgovernada existência boémia que perigou, em vários momentos, a aposta que compositores e directores de salas nela fizeram. Em vez de um amor regenerador, é quase ensurdecedor o drama que rapidamente se avizinha.

Em Outubro de 1949, Edith Piaf estreia em palco L’hymne à l’amour, que tinha acabado de compor, e dedica o tema a Cerdan. O poema, tremendo, lê-se como a mais terrível das premonições: “Se um dia a vida te arrancar de mim/ que tu morras, que vás para longe/ pouco me importa se me amas/ porque morrerei também”. Piaf desmaia em palco durante a actuação, na mesma noite em que Cerdan morre num acidente, quando o avião em que segue a caminho de Nova Iorque se despenha nos Açores.

A lenda de Piaf já estava, naturalmente, em marcha. Mas é talvez a partir daqui que mais peso ganha a famosa tirada do escritor e trompetista Boris Vian, confesso admirador da carga interpretativa de La Môme, quando diz que “ela far-nos-ia chorar mesmo se cantasse a lista telefónica”. L’hymne à l’amour, na versão de estúdio gravada no ano seguinte e com a participação do Ensemble Vocal Raymond Saint-Paul, é uma dessas interpretações capazes de levar quem ouve a fazer juras de amor ao/à primeiro/a desconhecido/a que lhe aparecer ao caminho. E é um dos temas escolhidos a integrar um vinil de dez polegadas com oito temas emblemáticos da cantora que é um dos bombons eleitos para fazer de Edith Piaf 1915-2015 um objecto de tiragem limitada e numerada pelo qual se justifica salivar em abundância.

Por falar em bombons, sem apostar propriamente nas poucas novidades musicais que a luxuosa caixa em forma de mala de viagem de cartão traz no seu interior, 1915-2015 assemelha-se a Boîte à Bonbons, a caixa de bombons com a integral da obra de Jacques Brel editada em 2003 (cujo título remetia para Les bonbons, tema da pena do belga). Ambas aspiram a esse estatuto de edição definitiva sobre os dois grandes marcos da canção francófona e, de facto, deixam muito pouco espaço para tudo quanto venha a seguir. Com 20 CD remasterizados, mais de 350 temas e com uma duração total superior a 20 horas, 1915-2015 agrupa as gravações de Piaf por períodos (só o primeiro disco, onde se escutam os temas que primeiro a popularizam, Mon légionnaire, Je n’en connais pas la fin ou La vie en rose, precede a relação de La Môme com Cerdan), complementadas por vários espectáculos que ajudaram a criar a lenda. E não é para menos. Se há por aqui passagens várias pelo Olympia (Paris), duas pelo Carnegie Hall (Nova Iorque) e uma outra pelo Bobino (Paris), o primeiro desses documentos, relativo ao Olympia de 1955, é algo de majestático, suficiente para arrumar quaisquer conclusões quanto ao brilhantismo de Piaf enquanto cantora e intérprete. Estão lá L’hymne à l’amour, L’accordéoniste ou Padam, Padam, cantadas com aquele tocante registo que fez dela a voz oficial da música francesa mundo fora, mas sobretudo dois temas entregues num cenário de devastação emocional — Légende (soberbo arranjo a raiar o jazz e a gerir de forma sublime os vários estados da canção) e Miséricorde (brilhante exercício fúnebre e de aura religiosa).

Edith Piaf 1915-2015 ouve-se à medida que se monta um pequeno mundo de descoberta. Começa por deliciar os olhos pelas imagens pop-up ou pelas fotografias incluídas num belo e cuidado livro, mas é verdadeiramente quando a espectacular edição cede o foco ao seu verdadeiro móbil — a copiosa documentação sonora — que, afinal, se justifica. E documentação sonora porque a riqueza aqui investida não se “limita” a juntar edições oficiais, discos cantados em inglês e registos de concertos, mas recupera ainda excertos de ensaios, entrevistas da cantora e a gravação do monólogo Le Bel Indifférent que, em 1940, Jean Cocteau escreveu a pensar em Piaf e que a própria interpretou no Théâtre des Bouffes-Parisiens.

O difícil, quando se começa a peneirar Edith Piaf 1915-2015, é pôr um travão nas audições, nas leituras e nas pesquisas paralelas que estimula. De certa forma, é um objecto perfeito de devoção, que promete vulgarizar todos os outros, e que, ainda assim, parece tão inesgotável que nos pede que não fiquemos por aqui. Daí, talvez, a opção por emalar todo este património de Piaf. É uma viagem que aqui se inicia. E dificilmente se lhe entrevê um fim.

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