A infância em tempo de covid-19: da socialização à humanização

Entrámos numa época na qual o rosto humano reduziu-se a olhos. Costuma dizer-se que os olhos são o espelho da alma, o que é facto é que não estamos habituados a ler as emoções do outro no seu olhar.

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"Agora temos que ser muito mais expressivos com o olhar para que sejamos compreendidos emocionalmente" Guillaume de Germain/Unsplash

O desenvolvimento infantil resulta da interação da criança com o meio ambiente que a rodeia. Desde a família, à escola e amizades o percurso que define o projeto de vida para cada um completa-se de inúmeras variáveis. A genética subjacente ao próprio é por enquanto imutável, já a epigenética pode ter contornos bastante diferentes.

Entrámos numa época na qual o rosto humano reduziu-se a olhos. Costuma dizer-se que os olhos são o espelho da alma, o que é facto é que não estamos habituados a ler as emoções do outro no seu olhar. Na maior parte das vezes, olhamos para qualquer outra parte do rosto e muito pouco para os olhos. Com a presença da máscara, e com os olhos apenas a descoberto continuará o rosto humano a ser reconhecido pelo bebé?

Nascemos com a noção do rosto humano: olhos, boca e nariz. Para ver se o bebé segue bem com o olhar é suficiente na maioria das vezes aproximarmos o nosso rosto a cerca de 20 cm do rosto do bebé para que o mesmo, nos poucos segundos que consegue de atenção em tenra idade, seguir o que já lhe é inato à espécie. Atualmente, o bebé nasce e apenas o pai e a mãe são visualizados sem máscara. Pelo menos que o ninho onde dará os primeiros passos seja constituído por seres diferentes de extraterrestres. Se o bebé falasse muito provavelmente diria: “Mas onde é que vim parar?...”

Além deste reconhecimento do rosto humano truncado, o que provavelmente virá no futuro a refletir-se em conexões neurológicas diferentes com consequente comportamento social diferente. E aqui entramos no que é a socialização da criança nestes tempos. Limitadas de olhar o amigo no todo, de reconhecer a expressão emocional com o rosto completo as estratégias que estas crianças desencadearão para socializar terão contornos que colocarão em causa algumas circunstâncias patológicas cuja socialização é parca. Até o próprio adulto se sentirá meio despido quando a máscara deixar de ter um lugar tão importante nas nossas vidas. Até porque agora temos que ser muito mais expressivos com o olhar para que sejamos compreendidos emocionalmente e demonstrar que estamos atentos ao outro.

São várias as crianças que mesmo não sendo obrigatório o uso de máscara até aos 10 anos não se sentem seguras se não a usarem, tal não é o medo inerente a esta situação. Receiam o toque físico quer seja com outra pessoa, quer seja com um objeto. Interiorizaram de tal forma a desinfeção das mãos que é comum assistirmos a crianças com 2 anos e menos a terem o gesto de colocar desinfetante e esfregar as mãozitas uma na outra.

Agora vejamos o seguinte se não pode haver afeto demonstrado fisicamente que socialização podemos esperar destas crianças futuramente? Até aos 7 anos de idade a vida é extremamente influenciada pelo adulto e pelo meio ambiente. A vivência atual transformou a visão do mundo pelos olhos da criança. Quando antes a máscara que usamos no nosso dia a dia era tida como uma metáfora, agora é real, pelo que as crianças aprendem desde cedo o que é escondermo-nos atrás de uma máscara.

Se nos escondemos atrás da máscara é mais fácil desumanizar. Ensinámos a vida inteira e fomos ensinados a ajudar o próximo, a partilhar, a ser bondoso, a não ser egoísta. E agora que valores transmitimos? Se alguém precisar de ajuda cujo toque físico esteja inerente não se pode permitir porque é risco de infeção. Logo a criança aprende pelo exemplo que mesmo que o outro precise de apoio pode passar ao lado e ignorar. A partilha deixou de ter lugar. É verdade que há risco de infeção na partilha de objetos ou alimentos, mas e se porventura o colega não trouxe lanche para a escola ou nem tem possibilidade de trazer? Anteriormente partilhavam. Então agora têm de ser encontradas estratégias para que a partilha não ocorra. Por exemplo, lanche fornecido pela escola. Se tem custos? Claro que tem, mas se contribuir para reduzir o risco de infeção ou de penalização por se partilhar então poderá ser um passo para a solução. Agora em vez de dizermos às nossas crianças que poderão ser bondosas e ajudar os amigos ficamos divididos entre os princípios que nos foram incutidos e que fazem parte de um inconsciente coletivo e o egoísmo.

Soluções para retomar valores neste período conturbado é algo que deve ser individual gerindo as emoções que andam à flor da pele para que possamos transmitir às crianças a tranquilidade necessária para que a socialização seja possível apesar de tudo e a humanização se mantenha acima de tudo.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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