Dia 106: o obstetra, a cesariana e o sentimento de culpa das mães

Ninguém de bom senso põe em causa cesarianas necessárias. Mas fica claro pelas estatísticas e é diariamente ilustrado pelas histórias das pessoas à nossa volta que há cesarianas a mais.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Filha,

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Sei que tens memórias amargas das cesarianas, mas nem sequer precisamos delas para nos escandalizarmos com o que se passa nos hospitais privados em Portugal: segundo dados de 2018, dos 12.366 partos que ali aconteceram, 66% foram por cesariana. Muito mais de metade. E os números de 2020 serão ainda mais altos porque sei, de fonte segura, que muitos dos obstetras à conta da covid-19 só fazem partos com dia marcado. Que, obviamente, têm uma maior probabilidade de evoluir para fórceps ou cesariana.

Nos hospitais públicos a taxa de nascimento por cesariana é de 29%, nos 73.238 partos que ali aconteceram e, como sabes, são as maternidades públicas que têm maior probabilidade de acolher as gravidezes complicadas ou de risco, o que torna ainda mais relevante a comparação. Se as cesarianas fossem feitas por necessidade médica absoluta então deviam ser os públicos a ter uma taxa mais alta.

É claro que sou a favor da cesariana, que veio salvar a vida de tantas mães e de tantos bebés, mas é uma solução para quem realmente precisa dela, porque é uma operação major, tudo menos isenta de riscos e “efeitos secundários”. Os peritos da OMS consideram que em país nenhum do mundo se justifica uma taxa de cesariana acima dos 15%, e sempre que sobe acima deste número é sinal de que as gravidezes não estão a ser seguidas, ou que existe excesso de “intervencionismo”, e em Portugal foi criada uma comissão para estudar o que se passava. As recomendações que daí resultaram aparentemente tiveram algum efeito no público, mas no privado parecem que não.

Se fores ao site da maioria dos hospitais privados vais ver que todos falam nas vantagens do parto vaginal e garantem que uma cesariana a pedido da mulher só se fará em circunstância raras, mas — desculpa a ironia — esqueceram-se de referir os casos em que o parto é marcado a pedido do médico, por ser uma data que lhe é mais conveniente, o que sabemos aumenta a probabilidade de desaguar numa cesariana. E salvo raras excepções, quem é a mulher que tem a segurança suficiente para contestar a opinião do “seu” médico, ou sequer para levantar mais do que umas dúvidas murmuradas? A relação que uma grávida cria com o seu obstetra ao longo de nove meses é fortíssima, uma relação de dependência que vai muito para lá do foro médico — garanto-te que me sentia muito mais ansiosa com a possibilidade do meu querido Dr. Berto do Carmo não estar na sala de partos, do que com a ausência do teu pai, que aliás nunca gostou de hospitais. Ou seja, postas perante a possibilidade de terem o bebé sem o/a obstetra, é evidente que as mães aceitam marcar uma data, enquanto as que dão à luz no público sabem, de antemão, que o bebé nascerá com quem estiver de serviço naquele dia...

Mas sobre o que vem depois, podes falar tu melhor do que eu que nunca passei por isso.


Querida Mãe,

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É de facto chocante. É um tema mesmo difícil em que todas as pessoas envolvidas ficam defensivas — as mães que passaram por uma cesariana têm, naturalmente, dificuldade em aceitar que glorifiquem o parto vaginal e sentem-se, às vezes com razão outras sem, mas o resultado é o mesmo, agredidas pelo que percebem como um discurso culpabilizante; os médicos reagem à defesa porque, alegam, nos estamos a esquecer de todas as coisas perigosas que podem acontecer num parto vaginal, dos constrangimentos dos hospitais onde trabalham, da conjugação do trabalho com a família.

Mas dito isto, não percebo como podemos andar todos preocupadíssimos com a covid-19, considerando-a e bem uma questão de saúde pública e depois fecharmos os olhos a intervenções cirúrgicas que podiam ter sido evitadas. É que a questão é mesmo esta: ninguém de bom senso põe em causa cesarianas necessárias. Mas fica claro pelas estatísticas e é diariamente ilustrado pelas histórias das pessoas à nossa volta que há cesarianas a mais, e o que não falta é evidência científica de que as cesarianas acarretam os seus próprios riscos, condicionam o futuro daquela família em relação às próximas gravidezes/número de filhos e “roubam” o bebé e a mãe de uma série de benefícios.

E sabe o que é que me faz mais impressão? A quantidade de mulheres que sai das consultas/partos a achar que tem um problema no seu corpo. A quantidade de mães a quem foi dito que teve de fazer uma cesariana porque “não dilata” é verdadeiramente aflitiva. Sim, o colo do útero não dilata a pedido, não dilata num horário, não dilata sob condições de pressão e stress, e dilata mais lentamente se tivermos deitadas e quietas. E isto é gravíssimo. Porque uma coisa é que um médico, a quem confiamos o nosso corpo e o do nosso bebé, nos diga “tenho medo de esperar o tempo todo que é preciso”, “Logisticamente é difícil dar às grávidas neste hospital, o espaço e o tempo de que precisam” ou “Não consigo mesmo ficar aqui consigo todo o tempo que seria necessário porque tenho muito trabalho e uma família”; outra — muito mais grave, e em muitos casos mentira —, é dizer “A culpa é sua. O seu corpo não funciona”. No primeiro cenário a mulher, pelo menos no contexto de um hospital privado, pode escolher, pode mudar de médico, pode ficar, mas no segundo não pode. E fica, durante muito tempo ou para sempre, a duvidar do seu próprio corpo.

A segunda coisa que me preocupa mesmo é a quantidade de mulheres que ao irem ter o seu bebé não têm conhecimento das intervenções que lhes são feitas. A quantidade de mães que não sabe que está a receber ocitocina para acelerar o parto, por exemplo. A questão não é, obviamente, o uso da ocitocina que é da competência dos médicos, mas sim a omissão de informação. Também não sabem, e ninguém lhes diz, que um parto induzido tem muito mais probabilidade de acabar numa cesariana. Que a gravidez pode ir até às 42 semanas, que os “toques” durante a gravidez não são “obrigatórios”, e que têm todo o direito – e capacidade – de obter informação que lhes permita fazer escolhas fundamentadas. Não perguntam, e quando perguntam, em muitos casos, a própria pergunta é acolhida com alguma irritação.

Como a mãe disse a relação entre uma grávida e o seu obstetra é profundíssima. Estamos, nessa altura, num estado de total vulnerabilidade. Uma relação transparente, verdadeira, que não endeusa o médico, nem é condescendente em relação à mulher, será sempre o melhor ponto de partida para melhores experiências de parto e uma redução da taxa de cesarianas. Porque, no final do dia, o ideal era não precisarmos de directivas que podem até levar os profissionais de saúde, para “cumprir quotas”, a não desistirem de um parto vaginal apesar de todos os sinais de alerta.

Eu sei que nenhum médico, por mais excelente que seja, pode assegurar a uma mãe que ela vai ter um parto vaginal. Ninguém pode assegurar sequer um parto 100% seguro, agradável ou feliz. Mas podemos dar – e pedir — toda a informação, para que uma mulher não sinta que está tudo a acontecer fora do seu controlo. E tirando em casos de cesarianas de emergência, em que obviamente não há tempo para nada disto e a própria mãe pouco quererá saber, na maior parte dos casos há tempo para deixar as mulheres terem os seus bebés e sentirem-se confiantes e seguras.

E já agora, se tantas vezes a indicação para cesariana é a “não-progressão da dilatação”, então valia a pena os hospitais privados investirem em perceber porquê! Porque se mais de metade das mulheres está a “sofrer desse mal” podemos declarar isso uma pandemia, não lhe parece, mãe?

PS: Às vezes rir é o melhor remédio por isso deixo-lhe este vídeo imperdível da Porta dos Fundos. Veja mesmo. É fabuloso.

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