Células imunitárias raras podem contribuir para o aparecimento de cancro

Descobriu-se que um tipo raro de células imunitárias pode contribuir tanto para regenerar tecido intestinal como para o aparecimento de cancro e de fibrose.

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Mini-intestinos cultivados em laboratório ajudaram a perceber a função de populações raras de células imunitárias Geraldine Jowett
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Reconstituição de como as células linfóides inatas de tipo 1 podem levar à degradação do hidrogel que envolve os mini-intestinos Geraldine Jowett
King's College London
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O novo hidrogel desenvolvido pela equipa DR

Perceber melhor o papel de um tipo raro de células imunitárias na doença inflamatória intestinal. Este foi o objectivo principal de uma equipa que contou com a participação de cientistas portugueses. Acabou por concluir-se que essas células podem contribuir para a reparação do tecido intestinal na doença inflamatória dos intestinos. Ao mesmo tempo, quando muitas dessas células se acumulam, estas podem também contribuir para o aparecimento de fibrose e de cancro. Os resultados foram publicados na revista científica Nature Materials.  

Mais concretamente, a subpopulação de células imunitárias estudadas chama-se “células linfóides inatas de tipo 1” (ILC1). O objectivo era então entender melhor como é que estas células influenciam certos processos da doença inflamatória do intestino, que está frequentemente associada à degradação do tecido intestinal, à fibrose ou ao cancro intestinal.

“Estudar este tipo de células, especialmente quando falamos de células humanas, e perceber como elas funcionam no intestino de doentes é complicado. Estas células são muito raras e difíceis de encontrar”, explica ao PÚBLICO Joana Neves, imunologista do Centro para as Interacções entre o Hospedeiro e o Microbioma do King’s College de Londres, que coordenou o trabalho juntamente com Eileen Gentleman, também do King’s College de Londres.

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A imunologista Joana Neves DR

Para as conseguir estudar, em laboratório, a equipa retirou células linfóides inatas de tipo 1 de doentes. Depois, cultivaram-se essas células em mini-intestinos desenvolvidos através de células estaminais. Por fim, esses mini-intestinos foram postos num hidrogel, que Joana Neves descreve como “uma espécie de gelatina”. Esse hidrogel foi desenvolvido precisamente para se conseguir imitar melhor o ambiente normal do intestino. “Isto permite-nos perceber como funcionam estas células raras em condições que são muito semelhantes às encontradas nos doentes”, salienta a cientista portuguesa.

Desta forma, percebeu-se que as células linfóides inatas de tipo 1 conseguem contribuir para a reparação do tecido intestinal durante a doença inflamatória intestinal. Mas, quando essas células se acumulam em excesso, também podem levar ao aparecimento de fibrose e de cancro.

Joana Neves explica que, até agora, se pensava que estas células estivessem só envolvidas no aumento da inflamação, o que pode resultar em doenças, nomeadamente na doença inflamatória intestinal. Por isso, a investigadora diz que “o mais surpreendente” neste trabalho foi mesmo perceber que as ILC1 são capazes de contribuir para a regeneração do tecido epitelial do intestino. Portanto, viu-se que têm uma função benéfica. Outra das surpresas foi verificar que também conseguem induzir a produção de certas proteínas que podem levar ao aumento de fibrose.

“Isto pode significar que, se tivermos algumas destas células no nosso intestino, elas podem ter uma função benéfica de regeneração do tecido [intestinal]”, esclarece a imunologista. “Contudo, se tivermos demasiadas destas células, elas podem contribuir para o desenvolvimento de cancro do intestino (devido ao aumento da proliferação do tecido epitelial) e levar ao desenvolvimento de fibroses.” 

Melhorar a qualidade de vida

Estas informações sobre as células linfóides inatas de tipo 1 podem vir a contribuir para novas terapias para a doença inflamatória intestinal. Joana Neves exemplifica que, ao se explorar a capacidade de as ILC1 contribuírem para a regeneração do tecido intestinal, isto poderá ajudar a desenvolver novos tratamentos para doentes que não respondem a tratamentos com medicamentos anti-inflamatórios. Ou, caso se consiga controlar a acumulação em excesso das ILC1, poder-se-á tentar reduzir as sequelas deixadas nos doentes. “O nosso objectivo é tentar explorar estas oportunidades para melhorar o controlo da inflamação nos intestinos destes doentes e melhorar a sua qualidade de vida.”

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Secção da parede intestinal de um doente com doença inflamatória intestinal. A imagem foi colorida artificialmente com duas cores para mostrar como as ILC1 podem mediar a regeneração do intestino, mas também podem promover o desenvolvimento de cancro e fibrose Geraldine Jowett

A cientista diz ainda que os resultados deste trabalho podem ir ainda mais longe e ajudar na investigação de outras doenças. Afinal, as células linfóides inatas também residem noutros órgãos. A investigadora especula que, possivelmente, as células inatas linfóides nos pulmões possam ter um papel na regeneração do tecido pulmonar e no desenvolvimento de fibroses. “Nesta altura, em que o contributo da fibrose para a patologia dos doentes de covid-19 começa a ser mais estudado, seria bastante interessante tentar perceber se há semelhanças entre o que nos observamos no intestino dos doentes com inflamação intestinal e os doentes com inflamação pulmonar”, sugere Joana Neves. O investigador português Ricardo da Silva, agora no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, também assina este trabalho.

Ainda não se conhecem os motivos pelos quais as células linfóides inatas de tipo 1 se acumulam em excesso. Este será um dos mistérios que a equipa de Joana Neves quer desvendar, assim como perceber de que forma a microbiota (população de microorganismos) nos intestinos consegue influenciar a função destas células.

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