Escola de Famalicão: entre a razoabilidade e a “virulência virtual”

Em toda esta contenda, que abriu um debate estimulante e importante, as duas crianças parecem ser as grandes esquecidas.

1. O debate público está hoje muito marcado, quando não mesmo capturado, pelo radicalismo e extremismo de posições, que conduz invariavelmente a uma simplificação dos argumentos e a uma “diabolização” dos interlocutores. Esta radicalização dos discursos e dos posicionamentos é bem visível no espaço público português, mas inscreve-se num movimento e numa tendência verdadeiramente global. As redes sociais, que basicamente dispensaram os grandes mediadores tradicionais (órgãos de comunicação social ou partidos, por exemplo), são as grandes catalisadoras deste clima de “violência e virulência virtual” em que os extremos se estimulam e alimentam reciprocamente. A verdade é que a quase ninguém é permitido ter visões ou opiniões complexas, em que os pontos de vista e as posições não se acantonem num dos lados da barricada.

Simplificando, se alguém é a favor da descriminalização do aborto não pode estar contra a despenalização das drogas leves; se alguém é a favor do casamento gay não pode posicionar-se contra a eutanásia; se alguém se diz anti-racista e anti-colonialista não pode orgulhar-se de Vasco da Gama ou de Os Lusíadas. Unge-se a ideia de que só se pode ser monoliticamente progressista ou conservador, liberal ou social, nacionalista ou cosmopolita. Na era da diversidade, não há lugar para pensamentos híbridos nem posicionamentos tingidos. Não há matizes, nem ângulos, nem manchas, nem esquinas. Nenhum problema pode ser visto na sua complexidade, integrando paradoxos, contradições, dúvidas, ambiguidades. Tudo tem de ser a “preto e branco”, ou nem isso, pois a linguagem “preto e branco” pode ser vista como tributária do racismo. Afinal, e contra as bandeiras multicores que em todo lado se desfraldam, nada pode ser “arco-íris”, porque este tem sido e é, na gritaria cromática das redes sociais, um pobre, um paupérrimo “arco-íris”: um “arco-íris” de uma só cor e de uma cor só.

2. Esta radicalização é visível no caso da disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento”, erigida em “velha-nova” querela da “Religião e Moral”, agora em versão “laico-progressista”. É significativo que quase todos se pronunciem – e legitimamente – sobre as questões de princípio, de filosofia da educação e de direitos fundamentais, mas poucos se concentrem nas duas crianças que estão no meio da contenda. Duas crianças de carne e osso, duas crianças com coração e cabeça.

Do lado dos que professam a sua fé na imposição da moral escolar, poucos são os que se preocupam com a absoluta desproporção da dupla reprovação retroactiva e do seu impacto na vida daquelas duas crianças – que têm existência própria e direitos autónomos dos seus pais. Do lado dos que apoiam a “inviolável” objecção de consciência, poucos são os que questionam as consequências da enorme exposição pública e mediática, primeiro na sua comunidade e agora na arena nacional, que os pais objectores impuseram aos seus filhos. Em toda esta contenda, que abriu um debate estimulante e importante, as duas crianças parecem ser as grandes esquecidas.

Não ponho em causa as rectas intenções dos pais e dos seus apoiantes ou dos seus antagonistas, que, creio firmemente, querem o melhor para aqueles dois jovens e decerto para todos os outros que genuinamente aspiram a representar. A verdade é que, mesmo que inadvertidamente, ambos os lados “instrumentalizam” os dois cidadãos menores para prosseguirem os seus fins “axiológicos” ou “ideológicos”. Para os arautos da novel moral pública, de nada parece interessar a desproporção manifesta e até inaudita das sanções que, apesar de motivadas por legítimas convicções dos pais, recaem afinal sobre os filhos. Não é castigando os filhos que se corrigem os pais. E para os defensores da liberdade de consciência e da coragem dos pais, nada os preocupa na intrusiva exposição dos dois alunos a uma polémica nacional. Como estarão eles a viver este processo, que marcas lhes deixará, como o avaliarão no futuro? Uma coisa é os pais defenderem as suas convicções, outra, bem diversa, é fazerem dos seus filhos menores os protagonistas dessa luta.

3. Olhando com distância para tudo isto, e para mim sem surpresa, ainda foram os professores dos alunos – o dito Conselho de Turma – quem foi verdadeiramente sensato e equilibrado; pensando, antes de mais, no superior interesse daqueles dois jovens. Decerto, não aplaudindo a falta às aulas, mas compreendendo que os jovens não eram de todo responsáveis por esse comportamento, resolveu passá-los de ano. Significa isto que tomou algum partido a favor ou contra qualquer direito ou “pseudo-direito” dos encarregados de educação? Julgo que não; limitou-se a tomar em conta a situação dos jovens, com sentido das proporções e decerto acautelando os interesses da escola.

4. Sempre fui a favor da liberdade de aprender e de ensinar e, por isso, defenderei até ao fim que uma disciplina com os conteúdos e com as finalidades da Cidadania e Desenvolvimento seja facultativa. Reconheço até que os pais nem foram tão longe, cingindo-se a invocar objecção de consciência. Mas sinceramente, diante dos dados do caso, também não creio que o “dano” infligido à educação e formação das crianças fosse sério ou grave. De resto, como sempre aconteceu com professores de todas as disciplinas, os pais estão em posição privilegiada para rebater ou corrigir ideias ou valores que a escola veicule ou transmita. E não é crível que na interacção com colegas e com a sociedade em geral aqueles jovens não sejam confrontados com mundividências bem diferentes daqueles que cultiva a respectiva família. Parece-me, pois, que os pais, de um lado, e o ministério, do outro, meteram as crianças numa “guerra” que não era nem devia ser a delas. Algo me deixou esperançado: a posição madura e delicada do Conselho de Turma. Pena que a sua sageza não tenha sido percebida.

SIM e NÃO

NÃO. Boris Johnson. O “Brexit” saiu do radar. Mas os sinais que o primeiro-ministro britânico tem deixado são muito preocupantes, rasgando o acordo de saída. Tudo aponta para que teremos um “hard Brexit”.

NÃO. Parlamento Europeu. Nada contra o retomar da normalidade. Mas reunir o plenário em Estrasburgo, quando era possível mantê-lo em Bruxelas, deslocando milhares de pessoas, é exponenciar riscos. 

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