Quando é o Brasil a cantar Portugal e não o contrário

Invertendo uma tendência antiga, cresce o número de músicos brasileiros a fazerem versões de canções portuguesas

Não é propriamente novo, mas marca uma tendência que se acentuou nos últimos anos. Estreia-se esta sexta-feira nas plataformas digitais a versão que o cantor e compositor brasileiro Zeca Baleiro fez de um original de Pedro Abrunhosa, Tu não sabes. É o segundo tema a ser divulgado (o primeiro, com um videoclipe, foi Às vezes o amor, de Sérgio Godinho) de um disco só com versões de autores portugueses, Canções d’Além-mar, com lançamento marcado para 10 de Julho.

Recuando no tempo, as ligações musicais Brasil-Portugal têm uma história lenta. Se antes do 25 de Abril era um vaivém com contactos de circunstância (Amália e Vinicius selaram essa fugacidade num disco que fez história), logo após a revolução dos cravos Nara Leão gravou duas canções de José Afonso, Grândola vila morena e Maio maduro Maio, no single A Senha do Novo Portugal (1974). E um ano antes Gal Costa gravara Milho Verde.

Mas o reconhecimento, pelo Brasil, da música que se ia fazendo em Portugal era praticamente nulo. Só na década de 1980 é que isso começou a mudar, primeiro com a colaboração de Wagner Tiso no álbum de estreia de Eugénia Melo e Castro, Terra de Mel (1982), a que se seguiram muitas outras no Brasil; e depois com o disco Coincidências (1983), onde Sérgio Godinho registou parcerias com Ivan Lins, João Bosco, Milton Nascimento e Novelli.

Pouco depois, em 1985, era gravado no Brasil o LP A Música em Pessoa, onde músicos como Tom JobimArrigo Barnabé, Dori Caymmi, Edu Lobo, Francis Hime ou Milton Nascimento, entre outros, davam forma musical a vários poemas de Fernando Pessoa. E em 1986 Caetano Veloso cantou em São Paulo Estranha forma de vida, de Amália Rodrigues, versão que ficou registada no disco ao vivo Totalmente Demais (1987), gravado para o projecto Luz do Solo.

O final dos anos 1990 (década em que Fafá de Belém gravou, em 1992, um disco só com fados) foi o segundo ponto de viragem: a Expo’98 permitiu a partilha do palco entre vários artistas portugueses e brasileiros, gerando alianças, novas amizades e participações em espectáculos e discos, com brasileiros a cantarem também autores portugueses. E se esses encontros tiveram Portugal por palco, foi em 2000, ano das celebrações dos 500 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral Cabral à Terra de Vera Cruz, que músicos portugueses como Dulce Pontes, Sérgio Godinho, Madredeus, Luís Represas, António Chaínho, Filipa Pais, Maria João e Mário Laginha ou Marta Dias actuaram no Brasil, ao longo do ano, perante plateias de 40 a 100 mil pessoas. Isso enquanto Martinho da Vila gravava Lusofonia, ao lado de músicos africanos residentes em Lisboa.

Antes disso, foi editado no Brasil em 1997 o CD Mensagem de Fernando Pessoa (com músicas de André Luiz Oliveira e as vozes de, entre outros, Caetano Veloso, Elba Ramalho, Elizeth Cardoso, Gal Costa, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Ney Matogrosso ou Zé Ramalho) e Maria Bethânia dava maior destaque a poetas portugueses em trabalhos seus, primeiro Fernando Pessoa em Imitação da Vida (ao vivo em 1996, com CD em 1997), depois Manuel Alegre em Diamante Verdadeiro (1998) e por fim Sophia de Mello Breyner em Mar de Sophia (2006).

Tudo isso fez aumentar o intercâmbio em bases mais equilibradas: cantores e músicos brasileiros participavam já, com alguma frequência, em discos portugueses, como sucedeu, entre outros exemplos, com António Chaínho em Lisboa-Rio (2000), Pedro Jóia em Jacarandá (2003) ou Pedro Abrunhosa em Palco (2003). Mas foi preciso chegar a 2007 para ver discos de músicos brasileiros dedicados em exclusivo à obra de músicos portugueses: os Couple Coffee com As Tamanquinhas do Zeca, só com canções de José Afonso (viriam a dedicar, dez anos depois, um outro disco às composições de Fausto Bordalo Dias, Fausto Food, de 2017); e a cantora Mylène Pires com Não muito distante, só com versões de temas dos Madredeus.

Não ficou por aí, a experiência: em 2008 e 2009, a cantora brasileira Márcia Barros lançou em dois discos, Bossa Nossa e Mais Bossa Nossa, versões bossa-novistas de canções dos Delfins, GNR, Jorge Palma, Madredeus, Mafalda Veiga, Paulo Gonzo, Pedro Abrunhosa, Rádio Macau, Rodrigo Leão, Santos & Pecadores, Sétima Legião, Trovante e Xutos & Pontapés. Enquanto isso, Jussara Silveira preparava-se para gravar um disco só com letras de Tiago Torres da Silva (Água Lusa, 2013); a cantora e actriz Valéria Carvalho lançava ao vivo (2014) o projecto Rui em Jeito de Bossa, dedicado às canções de Rui Veloso (saiu em disco em 2017); e Adriana Calcanhotto, que já musicara Mário de Sá-Carneiro, apresentava em Coimbra (2015) e depois em Lisboa e Porto (2017) um espectáculo com trechos de D. Dinis, Camões, Pessoa e Amália. Nestes anos são ainda gravados os primeiros CD ao vivo de brasileiros em palcos portugueses: Dani Black Ao Vivo no São Luiz (2015) e Arnaldo Antunes Ao Vivo em Lisboa (2016), também no São Luiz, com Carminho, Hélder Gonçalves e Manuela Azevedo, ambos editados em 2017.

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Zeca Baleiro com Jorge Palma após ensaio para o Rock In Rio Lisboa 2010 DR/SITE ZECA BALEIRO

Agora com Zeca Baleiro, outras canções portuguesas ganham tons brasileiros: Sérgio Godinho e Abrunhosa, mas também António Variações, Fausto, João Gil e João Monge, Jorge Palma, José Afonso, José Cid, Ornatos Violeta, Rui Veloso (com Carlos Tê) e Vitorino. Em Julho ouviremos como.

Nota: O inventário de versões brasileiras de canções portuguesas feito nesta crónica não é exaustivo. Haverá outras, certamente. Uma delas foi apontada por um leitor, Oscar Martins, que ao ler o texto quis adicionar uma música à lista: trata-se de Eu não sei, dos Aquidelrock (pioneiros do punk em Portugal), recriada em 2001 pela banda punk hardcore brasileira Ratos de Porão. Se entretanto houver indicação de mais versões brasileiras de temas portugueses, estas serão progressivamente acrescentadas à lista.

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