O privilégio de viajar com Milton pelo “trem azul” do tempo

Milton Nascimento trouxe aos coliseus a grata memória de dois discos que mostraram ao Brasil e ao mundo a força do som de Minas Gerais. Uma viagem sedutora, com o Clube da Esquina no comando.

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Nuno Ferreira Santos

Na mesma sala onde Milton Nascimento se estreou em palcos portugueses, em 1980 (num 1.º de Maio), o Coliseu dos Recreios de Lisboa, ouvimos agora as canções (muitas delas) dos históricos discos Clube da Esquina, 1 e 2, que somavam nada menos do que 44 temas, em dois LP duplos. Para quem, como nós, esteve no seu segundo grande concerto no Coliseu de Lisboa, na noite de 7 de Julho de 1982 (com lotação esgotada), foi uma estranha viagem no tempo, e nos dois sentidos. Porque o inesquecível concerto dessa já longínqua noite ocorreu menos de um ano após o lançamento, em 1981 e com edição portuguesa, do LP Caçador de Mim, que por sua vez surgira bem depois do Clube da Esquina 1 (1972) e até do Clube da Esquina 2 (1978). Portanto, quem ouviu Milton em 1982 (ou até em 1980) já ia mais adiantado no acompanhamento da sua produção musical, acabando no entanto por ouvir as canções mais emblemáticas dos Clubes (como Maria Maria, Cais ou Nada será como antes) nos vários concertos que ele por aqui foi dando, com relativa assiduidade. Mas foi preciso passarem quase quatro décadas para que tais discos surgissem em Portugal, ao vivo, permitindo-nos recuar uns anos, quando na verdade avançámos muitos.

Avisadamente, Milton já cantara, no primeiro Clube: “Sei que nada será como antes, amanhã.” Mas esse aviso ignorava, talvez propositadamente, que há coisas que permanecem sem grandes mudanças, e uma delas é o poder da emoção, passível de atravessar os tempos. Muito do público que tem assistido, no Brasil, a este espectáculo e tem sido convidado a dar a sua opinião sobre ele (o público, mas também a crítica), sublinha esse factor: a emoção. E a figura de Milton, querida entre músicos e público, é aclamada pelo seu todo, que é admirável: a obra, a música, o homem. Não é possível fugir disto quando se assiste a este espectáculo, até porque, embora debilitado fisicamente, Milton continua a manter na voz o timbre magnífico que lhe é peculiar (o tempo desgastou-o, mas não o desfigurou; e aqui é curioso notar que, até hoje, nenhum outro cantor, de qualquer geração, mostrou timbre igual ou sequer semelhante) e até a exibir uma capacidade incrível de prolongar os sons, como fez em Cais (quando cantava com Carminho) deixando toda a gente muda de espanto. No Coliseu de Lisboa, Milton cantou sentado, resguardando-se de esforços inúteis ao canto. Mas cantar sentado não é sinónimo de menoridade; basta lembrar o saudoso Solomon Burke, a ainda bem viva Elza Soares ou até o eterno Vinicius de Moraes. O que, no caso de Milton Nascimento, será mais de valorizar é a forma como ele interpreta as suas canções e nos dá, delas, a intensidade necessária para que as sintamos sem entraves temporais.

Tomando como referência os dois discos que serviram de base ao espectáculo, o primeiro teve primazia (com 13 canções num total de 21), cabendo ao segundo apenas quatro. Os outros temas ouvidos na noite vieram de outros discos, temporalmente próximos, mas sempre com assinaturas do grupo que formou o clube: além de Milton, Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges.

No início, com Tudo o que você podia ser e Nada será como antes, a voz de Milton ainda se ouvia com pouca clareza, mas, corrigido prontamente o som, soou já forte e clara em Nascente, mantendo-se assim até final do espectáculo. Cravo e canela, Casamiento de negros, Um girassol da cor de seu cabelo e Dos cruces antecederam o aplaudidíssimo Para Lennon e McCartney (do álbum Milton, de 1970. Depois, Milton saiu do palco, deixando entregue à banda os temas seguintes, com vocalização do jovem José Ibarra, vocalista e compositor da Banda Dônica que o acompanha nesta digressão internacional. E assim se ouviram San Vicente (também conhecida como Coração americano), Trem de doido e Estrelas. Quando Milton voltou ao palco, chamou a primeira convidada da noite, a portuguesa Carminho, que já cantara com ele em disco e ao vivo. Cais e Encontros e despedidas (do álbum homónimo, de 1985), ambas cantadas em dueto, foram particularmente tocantes e justamente aplaudidas pelo público. Depois Carminho saiu e Milton cantou Nuvem cigana, Clube da Esquina II, Lília (a belíssima canção que ele dedicou à sua mãe) e Paisagem da janela. A segunda convidada, Fafá de Belém, trouxe um inusitado vendaval ao palco, fazendo de Maria Maria quase um festivo carimbó. A canção, porém, aguentou o impacto e resistiu, ficando a plateia, de pé, a repetir a onomatopeia final, ritmada e quase hipnótica (que certo dia, também em Portugal mas na Aula Magna, ecoou no público por bem mais de quinze minutos, já bem depois de um memorável concerto de Milton Nascimento aí ter terminado).

O final fez-se com O trem azul (com todos no palco, embora sem grande sintonia), seguido de dois temas do álbum Minas, editado entre os dois Clubes, em 1975: Ponta de areia e Paula e Bebeto, este último com a assinatura de Caetano Veloso ao lado da de Milton.

Foi assim, numa doce viagem pelo “trem azul” do tempo, que terminou mais um concerto (dos muitos que ele deu, para nossa felicidade) de um dos gigantes da música universal: Milton Nascimento. Não foi como em 1982, nem podia, mas manteve a essência daquilo que nos faz olhá-lo como um mestre. O que ele fez, pela música do Brasil e do mundo, não tem preço. Ouvi-lo e reouvi-lo é o nosso tributo.

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