João Bosco, uma permanente atitude criativa perante os mistérios da música

Cantor e compositor mineiro apresenta em Portugal o seu mais recente disco, Mano Que Zuera, muito elogiado no Brasil. Esta quarta-feira na Casa da Música, no Porto, e quinta-feira no Tivoli BBVA, em Lisboa.

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João Bosco em concerto DARRIN ZAMMIT LUPI/REUTERS

João Bosco é música, pulsação, ritmo. Os que o ouvem e seguem há anos sabem que ele se transforma a cada disco e em cada palco naquilo que compõe, fazendo vibrar por todo o corpo as notas que dão vida às suas canções. Mano Que Zuera, o mais recente disco do cantor e compositor mineiro que muitos conheceram através de canções que Elis Regina imortalizou, é o seu primeiro registo de estúdio desde Não Vou Pro Céu, Mas Já Não Vivo No Chão (2009). E vai apresentá-lo agora em Portugal, esta quarta-feira no Porto, na Casa da Música (22h) e quinta-feira em Lisboa, no Tivoli (21h30). Com ele estarão Ricardo Silveira (guitarra), Kiko Freitas (bateria) e Guto Wirtti (baixo).

É um disco de originais mesmo nas releituras, como ele diz ao PÚBLICO. “Não vejo muita diferença, no processo criativo, quando trabalho com algo inédito ou na releitura de uma canção minha ou de outros compositores. Essa é uma atitude criativa, sempre.” Mas esse processo faz-se também de coincidências e descobertas. Como o nascimento de músicas que surgem no meio de outras, por inspiração do momento. “Por exemplo: eu estava participando num show do cinquentenário da Maria Bethânia. E durante as viagens ela me chamou ao camarim e disse: ‘Eu queria que você ouvisse essa música do [compositor baiano] Roque Ferreira; você não quereria pensar numa harmonia para ela, para eu poder cantar?’ Levei a música para casa e comecei a tentar trabalhar uma ideia. Nesse meio tempo surgiu um samba, que não tinha nada a ver com a música do Roque Ferreira. E eu achei por bem convidá-lo a fazer uma parceria comigo nesse samba, porque a Bethânia me tinha trazido a música que tinha suscitado aquilo.” João Bosco, que não conhecia Roque pessoalmente, enviou-lhe a música mas sem lhe falar do pedido de Bethânia. Coincidência: “Ele fez o texto desse samba rapidamente, em dois dias, e terminou citando um orixá muito importante na vida da Maria Bethânia, o orixá oiá. E ele não sabia da história! A música tem o poder de surgir com esse mistério.”

João Bosco dá, a propósito, o exemplo do poeta Drummond de Andrade. “Quando alguém perguntava para ele como surgia um poema, ele dizia: ‘Eu não sei como surge. Sinto que ele vai surgir porque sinto a temperatura do meu corpo se modificar.’ Então são esses sinais, esses sintomas, que no artista anunciam o surgimento de uma ideia.”

A família reunida

Outra história é a da mistura de um tema seu e de Aldir Blanc, João do Pulo, com Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges “Eu fiz esse samba sem instrumento, caminhando por Salvador, e ao gravá-lo só usei voz a capella e os murmúrios das pessoas em volta. Recentemente, quando ele voltou [à memória], ele já insinuava a presença desse Clube da Esquina, porque a melodia começou a vir no meio desse samba, uma coisa começou a se fundir na outra. E eu entendi isso do ponto de vista de uma certa religiosidade negra.” Porque a canção fala num atleta africano, João do Pulo, que recebeu uma medalha de ouro pelo triplo salto e que depois viu as suas pernas amputadas por um problema de saúde. “Uma medalha e uma tragédia”, diz João Bosco. “E eu acho que o Clube da Esquina veio trazer ao afro João o índio que ele não tinha.” O mesmo com as músicas: “Quando estão nesse díptico, deixam de ser o que eram individualmente e se transformam noutra coisa, numa suite afro-tupi.”

João grava também, pela primeira vez, Sinhá, tema que compôs em parceria com Chico Buarque e que este gravou com percussões no seu disco Chico (de 2011) : “Me ocorreu vestir a Sinhá com uns adereços de Cabo Verde, num género de música de que gosto muito. Tirei a percussão, ficou somente as cordas e é uma morna bem identificada.”

O disco volta a ter letras do seu filho, Francisco Bosco (cinco, ao todo), e nele participa também a filha de João, a cantora Júlia Bosco (já com dois discos gravados, Tempo, 2012, e Dance Com Seu Inimigo, 2016), num dueto vocal em Ultra leve. “É uma música pós-bossanovista, que fala do Rio de Janeiro, tem uma condução rítmica muito peculiar, minha. Como sempre gostei muito daqueles duetos da bossa, da Astrud Gilberto com o Tom ou o João, daquela elegância, daquela sofisticação, achei que devia convidar alguém para fazer um dueto aqui. Fiquei pensando nos timbres e acabei por descobrir que eu tinha perto de casa um timbre muito característico.” Ficou assim, num só disco, a família Bosco reunida: “O Francisco fala dos filhos, que são os meus netos; e a Júlia também é minha filha. Então nesse disco, mais dos que outros (nem sei se terei essa oportunidade novamente), achei conveniente a gente se juntar, porque fazia sentido.”

Brasil, país e música

Como todos os brasileiros, músicos ou não, João Bosco vê o seu país com um olhar crítico: “O Brasil não vai bem. Porque não se preocupa com uma coisa fundamental, que é a divisão de património, de riqueza. Nenhum país pode dar certo quando mais de 90 por cento da riqueza está nas mãos de menos de dez por cento da população.” E dá um exemplo a que costuma recorrer, como metáfora da situação brasileira: “Quando há numa família pais desajustados socialmente, os filhos sofrem. Ora o Estado funciona da mesma maneira, porque os filhos, ou seja, a população nacional, quando vêem um Estado assim desajustado, também vão agir da mesma forma. Simples de entender.”

Já quanto à música, o seu olhar divide-se entre o optimismo e alguma apreensão: “Os músicos jovens são muito mais competentes tecnicamente do que os da minha geração, têm outras formas de consulta. Mas é preciso estar atento na relação do ouvinte naquilo que ele está ouvindo ou na do leitor com aquilo que ele está lendo. Porque é a maneira como se relaciona com a obra artística que interessa. No meu tempo, um leitor de um livro entrava dentro do livro e desaparecia junto dos seus personagens, entrava dentro de uma música e se perdia no meio dos instrumentos, sabia aquilo de cor e salteado. Hoje fica tudo muito superficial. E essa é que é, para mim, a grande diferença.”

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