E agora para um mundo completamente diferente

Teremos que esquecer tudo o que achamos que sabemos sobre o resto do mundo. Teremos que fazer capas diferentes dos mesmos sítios — que já não são os mesmos sítios.

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As grandes viagens são coisas simples: antes de o serem, já o eram. Kitato

Nas férias do ano passado estávamos sentados num café em São Tomé quando encontrámos pousada num móvel empoeirado uma Fugas com data de 2009. O tema de capa, precisamente São Tomé, tinha a minha assinatura — “Peixes que voam, cavalos que mergulham, pessoas com pinta e uma estrada com vida.”

As probabilidades de isto acontecer pareciam tão diminutas quanto as chances de em dez anos a ilha leve-leve estar na mesma, de nada ter mudado de sítio, de a paisagem não se ter deixado descaracterizar mais e mais. Aos poucos, ou de uma assentada, o mundo real chegara ao “país das maravilhas” — eu próprio assim a descrevera —, sem mãos a medir para tantos cartões de telemóvel vendidos ao desbarato nas bermas da estrada, para tantos produtos de qualidade duvidosa importados e descartados, para tanto lixo a boiar nas praias, que já foram realmente maravilhosas.

Agora que penso nisso, e por culpa da memória curta, as imagens mais vivas das minhas reportagens estão guardadas nas fotografias e nos textos que ao longo dos últimos anos chegaram à capa da Fugas, paisagens que hoje, pandemia no meio de nós, estão ainda mais distantes, “planetas” que agora parecem pertencer a outras galáxias, acontecimentos que já são de livro de História.

As noites (e nenhum dia) que passei na Islândia, os segredos bem guardados de Ghardaia, o ovni que aterrou na Bulgária, as coisas boas que aconteceram em São Paulo e as pessoas reais que conhecemos em Brooklyn... Pergunto-me se daqui a dez anos ainda haverá gelo na Islândia, se os paulistanos ainda terão forças para escrever furiosamente nos muros da cidade, se Brooklyn continuará a imitar Manhattan — e a fugir de Manhattan. Pergunto-me se o planeta ainda conseguirá conservar alguns segredos.

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Teremos que viajar outra vez, que conhecer outra vez, que contar a história outra vez, que fotografar outra vez. Teremos que esquecer tudo o que achamos que sabemos sobre o resto do mundo. Teremos que fazer capas diferentes dos mesmos sítios — que já não são os mesmos sítios. A começar pelos nossos protagonistas, todos aqueles que acreditamos merecedores de uma foto de uma página, a par de uma outra com uns seis mil caracteres que contam uma história simples. Era uma vez aqueles que têm cabelos de linho, que fiam, tecem, moem, cavam, semeiam e colhem. Aqueles que vivem dentro de um livro de receitas, que moldam, que transformam fruta em compotas, cereais em cerveja, uvas em vinho, farinha e ovos em fálgaros e cavacas, vegetais frescos em pratos cinco estrelas.

Era uma vez aqueles que não servem animais — servem os animais. Aqueles que falam das avelãs, das cerejas, do pão, da quinoa, das castanhas como falam de um familiar que viram crescer. Aqueles que vivem num barco, que não têm poiso certo, que são viajantes — e ser viajante não se vende, guarda-se para nós —, aqueles a quem alguém lhes sussurrou “goza a vida” e cumprem um sonho. Aqueles que acreditam muito que mudam o mundo e que nos levam a querer conhecer o fim do mundo — para nós ainda fica em Kutupalong.

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Voltaremos a percorrer o interior de Portugal de autocaravana, a voar num balão de ar quente, a mergulhar no rio Douro, a correr na praia da nossa vida. Ao nosso ritmo. As grandes viagens são coisas simples: antes de o serem, já o eram.

Luís Octávio Costa, no PÚBLICO desde 1998, deixou-se de jogos de futebol em 2010. Foi fundador e subeditor do P3 até integrar a equipa da Fugas — já lá vão quase três anos.

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