Rohingya: “Estavam-nos a matar. Escondíamo-nos como galinhas”

Já foi a segunda maior selva do Bangladesh. Hoje é o maior campo de refugiados do mundo — vivem lá um milhão de rohingyas, que repetem histórias duras e pedidos de justiça. "Mataram os nossos familiares. Torturaram-nos. Violaram as nossas vizinhas e a nós também."

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Há uma árvore em Kutupalong, uma única árvore. Luís Octávio Costa
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O relevo acidentado desta zona do Bangladesh dificulta todas as operações. Luís Octávio Costa
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Os trabalhos ocasionais rendem aos rohingyas cerca de 400 taka (cerca de quatro euros) por dia. Luís Octávio Costa
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O bambu é um o material mais usado em todas as construções. Luís Octávio Costa
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As casas-de-banho numa das zonas mais recentes dos campos de refugiados. Luís Octávio Costa
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Os rohingyas só recebem arroz, óleo de palma e lentilhas das organizações internacionais. Luís Octávio Costa
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"Não temos nenhuma arma, não podemos fazer-lhes frente. Atacaram-nos, torturaram-nos muito", diz Arwar Hussain. Luís Octávio Costa
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"Quando chegámos havia muitas destas árvores", explica Shah Alam. Luís Octávio Costa
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Circula sempre muita gente nas estradas dos campos (principalmente com um drone nas proximidades). Luís Octávio Costa
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Kutupalong, Campo 10, Bloco H36. Onde há uns anos respirava a segunda maior selva do Bangladesh está uma árvore, uma única árvore — a única com porte para receber esse nome — perdida entre os imensos 34 lotes que fazem desta mancha agora estéril o maior campo de refugiados do mundo.

“Quando chegámos havia muitas destas árvores”, explica Shah Alam, professor de 30 anos, sentado no banco corrido de uma barraca que serve café e chá sob os galhos desta imponente figueira-de-bengala, uma espécie endémica do Bangladesh com raízes delgadas que engrossam quando atingem o solo. Estamos no topo de uma pequena colina com vista para milhares de barracas. “Cortámos todas excepto esta”, diz. “Há algo dentro dela.”

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"O exército batia-nos e queimava as nossas casas, os nossos abrigos. Mataram o nosso povo. Torturaram-nos. Por isso viemos", conta Abdul Jalil, 80 anos. Luís Octávio Costa

Abdul Jalil, 80 anos, rugas fundas como as de uma bot gach (a árvore que nos abriga, em rohingya, língua falada mas sem registo escrito), está sentado a seu lado. Tem cinco filhos e sete netos. “O exército batia-nos e queimava as nossas casas, os nossos abrigos. Mataram o nosso povo. Torturaram-nos. Por isso viemos. Viemos pela selva”, conta, olhar imperturbável.

A sua família chegou a viver junta depois do êxodo, um dos muitos desta história. Agora a família de Jalil está separada em quatro barracas nas imediações, entre caminhos de terra batida e escassos cursos de água suja. “Dantes vivíamos bem, estávamos a salvo. Não havia raptos, nem assassínios. Havia paz em todo o lado. Mas essa paz desapareceu. Tínhamos medo. Tínhamos de fechar as portas. Por isso viemos”, diz.

Quando chegaram em massa, em Agosto de 2017, os rohingyas, uma das minorias mais perseguidas do mundo, encontraram uma selva, que foram forçados a desbravar. “No início do êxodo havia muitos elefantes, que nos atacavam e destruíam os nossos abrigos. Esta árvore salvou-nos algumas vezes. Durante as monções há muito vento forte e chuvas torrenciais. Os nossos abrigos voam e ficam destruídos. Esta árvore também nos salvou. No Verão queimamos ao sol. Esta é a nossa última esperança. É uma bênção de Deus. É uma árvore muito importante nas nossas vidas. Aqui, podemos abrigar-nos”, diz Shah Alam, consciente do “grande pecado” que todos os rohingyas cometeram. “A nossa religião diz-nos que seria um pecado muito grande cortá-la. Diz-nos que não podemos cortar árvores grandes.”

“Aqui vivem muitas pessoas”, alerta Abdul Jalil. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) vivem na área de Cox's Bazar cerca de um milhão de refugiados rohingyas. O último êxodo começou em 25 de Agosto de 2017, quando a violência do Exército birmanês irrompeu no estado de Rakhine e perseguiu a minoria muçulmana — num país de maioria budista —, levando mais de 723 mil pessoas a procurarem refúgio no Bangladesh.

Ao fim de séculos estabelecidos na Birmânia, este povo viu-se a fugir da região que sempre foi sua. Perseguidos desde sempre, os rohingyas foram desprovidos de cidadania em 1982, altura em que foi aprovada uma lei, que, entre outras coisas, dizia que só podiam preencher o formulário se conseguissem falar uma língua oficialmente reconhecida e se provassem que os seus antecessores viviam no país antes da independência (em 1948). A grande maioria não cumpriu os requisitos e foi então considerada apátrida.

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Hoje, o governo da Birmânia continua a recusar reconhecer os rohingyas como cidadãos de pleno direito, alegando que são naturais do Bangladesh. O órgão das Nações Unidas para os refugiados e outros grupos defensores dos direitos humanos deixaram clara a existência de uma “limpeza étnica”. Aung San Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz, foi duramente criticada por não os proteger.

Na sua nova “casa”, no vizinho Bangladesh, os rohingyas não podem ir à escola após os 14 anos, estão proibidos de trabalhar, de ter dinheiro, de aprender o bengalês ("Os professores só podem ensinar birmanês e inglês; as crianças sabem dizer ‘one, two, three, four’, mas não sabem dizer ‘ek, dui, tin, char'”, explica-nos o tradutor Shakil) ou de sair dos campos, medidas que visam evitar que se fixem no país.

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Há mais de 500 mil crianças nos 34 campos de refugiados. Luís Octávio Costa

“Não faço nada no campo. Não tenho emprego”, diz Arwar Hussain, 55 anos, quatro filhos, torturado pelo Exército birmanês. “Não temos nenhuma arma, não podemos fazer-lhes frente. Atacaram-nos, torturaram-nos muito. O exército entrou na nossa casa e violou as mulheres. Por isso viemos”.

Vive “assim, assim”. Vive com a ração de “arroz, óleo de palma e lentilhas” que recebe nas filas de alimentação. “Para além disso, não recebemos nada” — os rohingyas também recebem embalagens de leite em pó para os bebés, quase sempre abertas e despejadas em bidões para que não sejam usadas no mercado clandestino.

No auge da crise, milhares de pessoas chegaram diariamente. A maioria — composta por mulheres e crianças com menos de 12 anos — caminhou durante dias através de selvas e montanhas ou enfrentou perigosas travessias marítimas no Golfo de Bengala. “O número continua a crescer a uma velocidade surpreendente. Esta é a emergência de refugiados que mais cresce no mundo”, assume o ACNUR. Não têm nada e precisam de tudo.

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As bombas de água e os objectos distribuídos pelas organizações. Luís Octávio Costa

“Estou disposto a voltar, mas quero paz. Se não encontrar paz, não volto à Birmânia. Se não me devolverem as minhas terras e os meus direitos, viverei no Bangladesh para sempre”, garante Abdul Jalil.

Aqui, à volta desta árvore e numa área de pouco mais de 13 Km2 , vivem centenas de milhares de rohingyas que convivem diariamente com cerca de três mil funcionários internacionais que vestem os coletes de mais de cem organizações não-governamentais. Aqui, as pessoas aparentam ser mais velhas do que são e contam histórias duras.

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A imensidão dos campos (vista de uma moderna estrutura de bambu construída pela OIM). Luís Octávio Costa

“Sofremos muito. Estavam a matar-nos. Estavam a cortar-nos. Estavam a queimar as nossas casas. Estavam a torturar-nos de muitas formas. Caminhámos durante 15 dias. Não podem imaginar o sofrimento pelo qual tivemos que passar. Nunca o iremos esquecer”, repete Ali Nessa, 35 anos e cinco filhos que frequentam um dos 639 centros de ensino instalados pela BRAC — organização internacional de desenvolvimento sediada no Bangladesh que trabalha na zona de Cox's Bazar há 36 anos.

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Ao fundo, com a ajuda dos rohingyas e da tecnologia, crescem campos em socalcos. Luís Octávio Costa

“É importante haver escolas para as crianças. Se as pessoas não aprendem é como se fossem cegas. Passam a ser inúteis, surdas. Na Birmânia as crianças não tinham hipótese de estudar. Tínhamos tanto medo dos militares que quando o sol se punha desligávamos as luzes. Aqui as crianças estudam, brincam e crescem. Lá, escondíamo-nos como as galinhas se escondem para que ninguém nos encontrasse. O nosso sonho é que as crianças tenham sonhos e que tenham um futuro”, diz Ali Nessa.

Os militares birmaneses entraram na casa de Ali Nessa e levaram o marido atado. Os filhos “viram tudo com os próprios olhos”. “Choraram, choraram, choraram... As crianças não vão esquecer”, relata, sentada numa cadeira de plástico em frente a uma das escolas com o símbolo cor-de-rosa da BRAC, que até à data tem inscritas cerca de 51 mil crianças. “Ela tem algo mais para vos dizer”, avisa Shahirah, a tradutora de circunstância. “Vimos militares a atirarem crianças para a fogueira. Obrigado por terem vindo”, despede-se Ali Nessa.

Em Setembro de 2017, as organizações no terreno deram início a uma acção de emergência tendo em vista a resolução das necessidades imediatas dos refugiados, que se instalavam de qualquer forma. Foi como pegar num jogo de simulação (em que o jogador constrói e administra uma cidade) num nível muito primitivo e ter de reorganizar tudo.

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As extensões dos campos são o futuro. Luís Octávio Costa

Tendo em conta a falta de abrigos adequados, de água e de saneamento; tendo em conta a sobrecarga das infra-estruturas e dos serviços; tendo em conta o risco de transmissão de doenças pelo ar e pela água, a vulnerabilidade das mulheres grávidas, dos idosos e das crianças; tendo em conta o risco de ciclones e de cheias durante as monções (e dos deslizamentos de terra) e o calor extremo dos meses de Verão; tendo em conta o apoio às comunidades de acolhimento; e, principalmente, a geografia do terreno, que muito complica todas as acções inerentes a uma “operação muito cara” — tão cara que, para se manter em 2019, acaba de pedir ao mundo 920 milhões de dólares (mais de 818 milhões de euros) —, segundo Manuel Pereira, português que coordena a acção da Organização Internacional das Migrações (OIM).

Um ano e meio depois, é visível a evolução estrutural dos campos sem fronteiras, atravessados pela famosa Army Road, a estrada de tijolos (provenientes das muitas fábricas que se avistam da principal estrada que liga Cox's Bazar a Teknaf, o ponto continental mais a Sul do Bangladesh) construída pelo Exército deste país que, como em O Feiticeiro de Oz, serpenteia através de um cenário sem fim.

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Onde há uns anos respirava a segunda maior selva do Bangladesh está uma árvore, uma única árvore — a única com porte para receber esse nome. Luís Octávio Costa

Quem a percorre, e às suas ramificações de terra estreitas e sinuosas, assiste a um corrupio de jipes de ONG, de tuk-tuks e de pessoas — 20% dos rohingyas são homens adultos, apesar de parecerem mais porque dominam o espaço público — que carregam pilhas de madeira, sacos de comida (recebem apenas arroz, óleo de palma e lentilhas), gás (têm direito a uma botija a cada 45 dias; a cada 26 dias se se tratar de uma família de seis pessoas; a cada 16 dias se for uma família de oito a dez pessoas) e outros objectos, quase todos com a cor e a marca de uma organização internacional (baldes, bidões, mochilas, oleados...).

Os campos, que param duas vezes por semana (sexta e sábado) por questões religiosas, são espaços mais ou menos homogéneos onde as pessoas sobrevivem entre barracas de bambu entrelaçado cada vez mais resistentes — cada vez mais definitivas. Há latrinas, painéis solares e bombas de água, que funcionam como uma espécie de parque de diversões para os mais pequenos, com tarefas de adulto. E há pequenos grandes negócios, um pouco à semelhança do comércio que se desenvolve nas aldeias à volta dos campos.

Ao longo das vias, os rohingyas, orgulhosos, trabalhadores e resilientes, são costureiros (como Ismael, que comprou uma Singer mal chegou), ferreiros (uma faca custa entre 200 e 300 takas, algo como dois e três euros) e barbeiros, gerem barracas onde criam galinhas, barracas onde reciclam garrafas de plástico, barracas que funcionam simultaneamente como café, restaurante, padaria e tabacaria (onde se vendem folhas verdes de bétele como tabaco de mascar, artigos de mercearia e até produtos made in Myanmar: café, leite de cereais em pó, cigarros Marble, noodles Camel...).

Ayub Ali, 57 anos, chegou em Outubro. Era lojista na Birmânia. Já montou o seu negócio. “Perdi tantas coisas... terras, dinheiro, familiares, o meu filho. Não encontro paz interior”, desabafa.

“Recebemos muita coisa, mas não temos paz. Se o Governo da Birmânia nos devolver o que nos tirou, teremos finalmente paz. Queremos viver como cidadãos da Birmânia. Voltaremos se recebermos a nacionalidade. Procuramos justiça. Queremos a liberdade das nossas crianças. O Governo da Birmânia nunca nos deu essa liberdade. Vivíamos como prisioneiros, éramos atacados. Esperemos que o mundo nos ajude. Não estamos preocupados connosco, mas com os nossos filhos. Queremos que tenham uma boa educação — talvez assim tenham um bom futuro no Bangladesh. Queremos voltar, mas se ficarmos queremos uma boa educação para os nossos filhos.”

As centenas de milhares de jovens são, segundo a directora de psicologia e saúde mental da OIM, o principal grupo de risco da comunidade rohingya. “Os jovens entre os 16 e os 28 anos do sexo masculino não podem ir à escola, não têm trabalho e passam o tempo sem nada para fazer. Basicamente, esperam que os dias passem”, justifica a colombiana Olga Rebolledo, referindo-se a limitações impostas pelo Governo do país acolhedor.

Laila Begum, 45 anos, tem seis filhos com ela. “Por graça de Alá estamos no Bangladesh, onde temos comida e abrigo. É uma sorte termos esta qualidade de vida. O Governo do Bangladesh dá-nos abrigo, como a nossa mãe. E as organizações dão-nos comida, como o nosso pai. Mas estamos a queimar ao sol. Temos água, mas precisamos de água fresca. Outro problema é a falta de comida: não temos carne, não temos galinha. Comemos vegetais todos os dias”, diz, numa mistura de emoções. Até ver, viver em Kutupalong é um remedeio. “Tínhamos que fugir de um lado para o outro com medo do exército, que entrava nas nossas casas. Não nos deixavam dormir. Mataram os nossos familiares. Torturaram-nos. Violaram as nossas vizinhas e a nós também. Os homens não podiam rezar à sexta-feira. Estavam a matá-los.”

À pergunta “ponderam voltar?”, respondem sempre com um “sim” condicionado. “Se o Governo não nos torturar e se nos der a cidadania, então podemos voltar. Mas temos medo. Queremos viver a nossa vida. Se o Governo da Birmânia nos bater e torturar queremos ficar aqui. Somos seres humanos. Temos direitos como todos os outros”, diz Laila Begum.

À medida que a crise se aproxima de uma fase mais organizada, está a aprofundar-se a resposta com foco na redução do risco de desastre e na mudança da abordagem humanitária.

As organizações procuram capacitar os rohingyas com técnicas que facilitarão o seu bem-estar a longo prazo, criam espaços pedagógicos, multiplicam zonas seguras para as mulheres (o apoio psicológico é uma prioridade), inauguram unidades de saúde (a OIM tem dez, quatro delas de atendimento permanente) e ambulâncias (a OIM tem uma frota de 12 veículos), isto para além do reforço e da redistribuição das estruturas/edifícios de apoio, do fortalecimento das encostas e da construção de extensões em alguns campos, uma empreitada já visível no horizonte que conta com o trabalho à jorna dos rohingyas (por 400 taka, cerca de quatro euros, por dia). 

O futuro de Kutupalong será feito de estradas largas, casas-de-banho (que substituem as latrinas), cimento e socalcos, técnicas de engenharia avançadas e o apoio topográfico fornecido por drone, uma ferramenta recentemente posta ao serviço do trabalho humanitário.

À sombra da árvore, e em jeito de despedida, Shah Alam pede que se transmitam dois pedidos: “As monções arrastam a terra das raízes da árvore. Precisamos de alguns sacos de terra para as fixar ao chão. E árvores, queremos mais árvores!”

O PÚBLICO viajou no âmbito da Bolsa de Exploração Nomad

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