Movimento de defesa dos artistas portugueses atravessa fronteiras. “Há gente que está a ficar sem dinheiro para comer”

Meg Stuart, Philippe Quesne ou Damien Jalet fotografaram-se a segurar folhas de papel com a etiqueta “Unidos pelo presente e futuro de Portugal”. Acção Cooperativista defende que apoios anunciados para as artes “não são inclusivos” e que Graça Fonseca “tem um desconhecimento profundo do que se está a passar na realidade”.

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Artistas alegam que são necessárias "medidas consistentes já" e que "isso não tem vindo a acontecer” Nelson Garrido

Há duas semanas, em virtude da paralisação provocada pelo novo coronavírus, 14 associações formais e informais ligadas à actividade artística do país assinaram o comunicado Unidos pelo presente e futuro da Cultura em Portugal, com um apelo à criação de estratégias “a curto, médio e longo prazo” para o sector e à protecção dos seus trabalhadores. Desde então, começou a circular nas redes sociais uma etiqueta com o mesmo nome, e na noite de terça-feira o movimento ganhou novas dimensões, transformando-se numa corrente internacional com manifestações de apoio por parte de figuras como os coreógrafos Meg Stuart, Sidi Larbi Cherkaoui e Damien Jalet, a bailarina Antonija Livingstone ou o encenador Philippe Quesne.

A ideia começou no Facebook, com a criação do grupo Acção cooperativista de apoio – artistas, técnicos, produtores (Acção Cooperativista), que, com apenas um mês de existência, reúne já cerca de 2500 membros. Carlota Lagido, fundadora da iniciativa, explica ao PÚBLICO que o colectivo surgiu com o objectivo de “colmatar a ausência de respostas governamentais em relação à protecção social e à existência efectiva de ajudas ou fundos de emergência para a comunidade da cultura e das artes”. “Na maioria dos casos, não somos abrangidos pelos apoios da Segurança Social”, sublinha a bailarina, coreógrafa e figurinista. “Os apoios anunciados não são inclusivos ou transversais e a ministra da Cultura tem um desconhecimento profundo do que se está a passar na realidade.”

Depois da publicação do comunicado, algumas das “estruturas representativas do sector” que se juntaram à Acção Cooperativista, como o sindicato Cena-STE, a Rede – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea ou a Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA), foram “chamadas a dialogar”. A GDA, por exemplo, encontrou-se com Marcelo Rebelo de Sousa a 25 de Abril e apontou para a necessidade de um “reforço imediato e significativo das verbas destinadas à emergência social das artes e das actividades culturais, proporcional à escala dos países europeus que já tomaram medidas neste sentido”, para além de aludir à “criação do Estatuto Profissional do Artista, com a respectiva definição da situação laboral, social e fiscal que regulamenta as suas ocupações”. Carlota Lagido frisa que este contacto próximo entre a tutela e as entidades que defendem os trabalhadores é importante, mas, ao mesmo tempo, peca por tardio e “o momento em que vivemos pede muito mais”. “Precisamos de medidas consistentes já e isso não tem vindo a acontecer”, sustenta. “Há muita gente que está a ficar sem dinheiro para comer.”

Há pouco mais de 24 horas, a organização estendeu o seu raio de acção com a publicação, nas redes sociais, de fotografias e um documento em branco, pedindo apenas que os apoiantes destas reivindicações escrevessem nos comentários o seu nome. Muitos artistas estrangeiros, como Meg Stuart, fotografaram-se a segurar cartazes ou pequenos pedaços de papel com a etiqueta “Unidos pelo presente e futuro de Portugal”. A ideia, conta Ana Rocha, mediadora, programadora cultural e artista independente que também se juntou à Acção Cooperativista, passa pela criação de uma folha onde constar a lista de todos os que se mobilizaram em prol de uma mudança verdadeira”. “É uma boa forma de fazermos pressão ao ministério da Cultura, o que é muito urgente”, complementa Carlota Lagido, até porque “a comunidade está exausta, com dificuldades enormes”, e a “opinião pública não está a par destas coisas”.

O branco, continua Ana Rocha, simboliza “a miséria e a fragilidade em que se encontram os agentes culturais. “Pode representar o silêncio”, sugere, assim como pode “representar o vazio nos bolsos e nos frigoríficos”.

A criadora começou a fazer parte da Acção Cooperativista, que descreve como um “grupo não hierárquico e transversal, facilitador de diálogo e articulação entre artistas anónimos e independentes, que trabalhem em todas as áreas de criação da cultura e das artes”, devido à “urgência de avistar a pequena luz ao fundo do túnel”. Acredita que “só com a boa vontade das pessoas e o abatimento do ego das representatividades” algumas das reivindicações, como um “maior e mais compreensivo mapeamento do tecido artístico regional, tanto para independentes como para os que trabalham com estruturas”, serão ouvidas. Adianta que está “farta da palavra ‘precários’, porque não somos nenhuns coitadinhos”, e considera que o Governo deve “pensar em novas formas de produzir, criar e programar” se quer “trabalhar para a manutenção, continuidade e sustentabilidade das artes”. “O orçamento tem de ser revisto para ser sabiamente aplicado.”

Rui Spranger, por outro lado, é um de muitos actores que ficaram “com o Verão todo possivelmente em xeque” devido à crise pandémica e ao adiamento ou cancelamento em massa de espectáculos. “Logo no início do estado de emergência”, reuniu amigos e colegas de trabalho no grupo Intermitentes Porto e Covid – um dos 14 integrantes dos Unidos pelo presente e futuro da Cultura em Portugal – para “perceber quais eram os valores reais das perdas financeiras nos diferentes vértices do nosso sector”. Para o artista, “estes novos apoios que têm sido anunciados pelo Governo para abranger mais gente são insuficientes”, na medida em que estão “abaixo do limiar da pobreza”. Foi com “o apoio da família” que conseguiu pagar a renda, e, graças ao concurso de emergência levado a cabo pela Fundação Calouste Gulbenkian, conseguirá fazer a necessária contenção de custos “até ao final de Junho”. “Depois disso, não faço ideia. Estou completamente sem perspectivas de trabalho. Mesmo depois da rentrée, não tenho nada agendado. Não sei mesmo como é que isto vai ser.”

Na véspera do Dia Mundial da Dança, em Abril, a Rede divulgou um comunicado de imprensa no qual classificou as soluções até à altura avançadas por Graça Fonseca, responsável pela pasta cultural do país, como “desadequadas, dispersas e pouco abrangentes”. A organização criticou o facto de os critérios de apoio extraordinário da Segurança Social deixarem de fora “inúmeros trabalhadores cuja actividade é intermitente” e acrescentou que “os valores atribuídos a quem cumpre os requisitos não correspondem ao que deve ser um apoio de urgência a quem vê os seus rendimentos reduzidos a zero”, sendo que “em alguns casos há pessoas a receber menos de 100 euros”.

Pedro Wallenstein, representante da GDA, confessa que foi um desafio chegar a uma versão final do manifesto devido às “muitas susceptibilidades em jogo”, mas fica contente por ver que “temos, talvez pela primeira vez, uma união tão grande num meio tão largo e díspar”, sugerindo também que a audiência com o Presidente da República foi “útil e permitiu potenciar algumas mexidas”. Durante a manhã, o Ministério da Cultura anunciou que a Linha de Apoio de Emergência ao Sector das Artes vai apoiar mais de 300 projectos e que os próximos concursos da Direcção-Geral das Artes vão abrir este mês com uma dotação de 2,8 milhões de euros

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