Dia 16: Como é nascer em tempo de covid-19?

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para quem está separado pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida mãe,

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A nossa Martinha fez ontem 5 anos. Há 5 anos, estava deitada num bloco operatório a fazer uma cesariana que, como a mãe sabe bem, eu queria a todo o custo evitar, com as lágrimas a caírem-me pela cara e as mãos amarradas. A única coisa que me consolava era sentir na testa a mão do meu marido e as palavras que me dizendo. Ele, que sabia o que tudo aquilo me custava.

Depois de lhe dar um beijinho, a Martinha foi posta num canto da sala para ser vestida e, de seguida, por um qualquer protocolo, ficou o resto do tempo longe de mim. Eu olhava para ela e sentia dentro de mim uma ansiedade desmedida por não lhe poder tocar. Prometi a mim mesma “portar-me bem” e não dizer nada, aguentei até ao fim, mas quando me tiraram da sala para o corredor perguntei, já desesperada, se ela não podia vir comigo.

A enfermeira foi buscá-la e, quando estava mesmo a pô-la nos meus braços, disse — certamente, sem perceber o impacto que isso teria em mim —: “Oh, ela é tão querida, vou só mostrá-la à minha colega.” Eu ia tendo um ataque. Não era uma coisa consciente, nada tinha a ver com um parto idealizado (onde esse já ia!), era uma ansiedade física de ter a minha cria perto de mim.

Se a memória deste meu parto (que ainda assim foi tão melhor do que o das gémeas), ainda hoje me faz tremer, fico com um nó na garganta só de pensar nos partos que estão agora a acontecer nos países afectados pela covid-19. Sei que estamos num estado de emergência. Que todos os hospitais, em todo o mundo, estão a fazer o melhor que podem. Que estas alturas exigem medidas dramáticas. Mas é preciso ter muito cuidado, principalmente tratando-se de uma altura tão vulnerável tanto para a mãe, como para o bebé, para que não aconteçam experiências absolutamente traumáticas, sobretudo se não existir evidência científica que torne as restrições absolutamente necessárias. Não estou a exagerar quando digo traumáticas. Não é uma palavra leve, mas é a certa.

Situações em que uma mãe que tem de dar à luz sozinha, um pai impedido de ver o seu recém-nascido, um recém-nascido separado da mãe durante 14 dias ou mais, a frustração de uma mãe que quer amamentar, mas é proibida de o fazer apesar de o vírus não estar presente no leite materno, e a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendar o contrário, podem abrir feridas complicadas de sarar.

E, até hoje, as instruções no site da OMS são claras: à luz do que se sabe, uma mulher com covid-19 deve ser apoiada a amamentar em segurança, ter contacto com o seu bebé, e até partilhar um quarto com o seu filho.

Tem acompanhado estas notícias? A mãe, que sabe ver para além do sensacionalismo, o que acha?


Ana,

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As tuas perguntas levaram-me a uma jornada de investigação que me deixou pouco tranquila. Temo que profissionais de saúde muito cansados e pressionados, legitimamente preocupados com a possibilidade não só de serem contaminados, mas de contaminarem os seus próprios filhos, considerem que separar a mãe covid-19 do seu recém-nascido, ou impedir que amamente, são apenas “mal menores”.

Preocupa-me que possam interpretar essa ânsia instintiva e poderosa da mãe querer junto de si o seu filho como uma prova de que não ama a criança o suficiente para colocar a sua saúde à frente do suposto “capricho”. E, se isto acontecer, será esse maltrato, mais do que a circunstância em si, que a irá marcar, desencadeando um processo de raiva e revolta que pode tornar o luto pelo momento sonhado mais difícil de conseguir.

Espero, também, que quem dita os protocolos a aplicar em cada maternidade não se esqueça de que não são só as mães que precisam dos bebés, mas sobretudo os bebés que precisam desesperadamente das suas mães, do seu colo e do seu leite que, além do mais, os protege de tantas outras doenças, e provavelmente mesmo deste coronavírus.

São essas certezas que levam a OMS a manter as indicações de que falas. Indicações que, por exemplo, o Colégio de Ginecologia-Obstetrícia da Ordem dos Médicos decidiu ignorar, aconselhando a separação da mãe doente do seu bebé, por se temer que não sejam exequíveis os procedimentos de protecção obrigatórios — máscara, lavar das mãos e das superfícies — e os recém-nascidos acabem contaminados.

Embora a maioria das crianças tenham sintomas leves, uma eventual pneumonia num recém-nascido poderia ter consequências gravíssimas. Mas, vamos esperar, que mesmo nessas condições impere o bom senso, e aquele bebé possa ir para casa com o pai, ou com outro cuidador não contaminado, e não seja “abandonado” num berçário onde, aliás, corre o risco (talvez maior?) de ser contaminado por uma enfermeira ou um médico.

Quanto à amamentação, para lá de uma orientação confusa da Direcção-Geral de Saúde (DGS) — que espero seja clarificada em breve —, todos os especialistas recomendam que, na pior das hipóteses, o leite materno seja retirado e dado ao bebé.

Esta carta já vai longa, mas só para terminar, se queres saber a minha opinião, tudo vai depender da sorte ou do azar da equipa que nestes próximos meses estas mães vão apanhar pela frente. E, felizmente, há profissionais extraordinários que vão dar tudo por tudo para encontrar a melhor solução, ouvindo e respeitando a vontade da mãe e do pai.

Que a força esteja com estas famílias.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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