Risco de fuga e abuso aumenta em casas de acolhimento de crianças e jovens

Estão diminuídas as equipas dos centros de acolhimento e lares de infância e juventude. Sem visitas nem saídas, aumenta o risco de abuso dentro das instituições e está limitado o controlo que nelas se exerce. No princípio desta crise, houve quem tivesse mandado crianças e jovens para casa. Entretanto, alguns adolescentes encetaram fuga.

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FRANCISCO ROMAO PEREIRA

Já aconteceu em Braga com grande aparato: fartos do confinamento ao lar da Fundação Bonfim, há uma semana, um rapaz e duas raparigas ameaçaram uma funcionária com uma faca, tiraram-lhe as chaves do carro, amarraram-lhe as mãos e os pés e puseram-se em fuga. Já depois de um pequeno acidente e de um despiste, o rapaz, de 15 anos, foi interceptado pelas autoridades e revelou que as raparigas, um ano mais novas, estavam na estação de camionetas, decididas a rumar a Lisboa. Foram capturadas já no Porto e, de imediato, conduzidas a Braga.

É, sobretudo, para estar com a família e os amigos que fogem crianças e jovens de centro de acolhimento temporário e de lares de infância e juventude. Na única tese feita em Portugal sobre este assunto, da autoria de Joana Cerdeira, factores individuais conjugam-se com factores de contexto – é maior o risco em casas grandes, só para rapazes ou só para raparigas, com regras mais apertadas, menos actividades de tempos livres, reduzido contacto com o exterior, menor qualidade da relação com os profissionais que lá trabalham. E estes últimos exacerbaram-se desde que não há aulas nem outras actividades lá fora, foram proibidas as visitas e as saídas temporárias, ficaram depauperadas as equipas.

Apesar das mudanças dos últimos anos, as casas ainda são grandes e segregadas, nota Sónia Rodrigues, investigadora externa da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, que fez tese de doutoramento em acolhimento residencial e supervisiona muitas delas. A atenção não é personalizada, como no seio de uma família. E as crianças e jovens têm memórias traumáticas. Em stress, tendem a reagir “como se houvesse uma ameaça, como se estivessem em perigo”. Num instante, entram no modo “ataca ou foge”.

Contam entre zero e 24 anos. Em 2018, ano de referência do último relatório divulgado, somavam duas centenas à guarda de famílias de acolhimento e perto de sete mil à guarda de instituições. Comissões de protecção ou tribunais de família e menores decidiram retirar estas crianças e jovens à família. Só essas entidades podem autorizar saídas para férias e/ou fins-de-semana, depois de verificadas as condições de segurança. Alguns iriam uns dias ou umas semanas agora que é Páscoa e, por causa da covid-19, perderam a oportunidade.

Jovens enviados para casa

A pandemia não assusta só crianças e jovens. No início, ainda antes de decretado o estado de emergência, a falta de orientação era tal que algumas instituições se apressaram a enviar jovens para casa - várias, em diversas partes do país, enviaram só os mais problemáticos, mas pelo menos uma, em Vila Real, Os Salesianos de Mirandela, enviou todos. “As situações reportadas foram de imediato alvo de intervenção por parte dos tribunais onde correm os processos e dos serviços da segurança social, no sentido da devida reposição da situação”, afiança o gabinete da ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho. 

Já depois, o gabinete da ministra acrescentou: “estão a ser, a todo o momento e sempre que necessário, dadas orientações às casas de acolhimento. As equipas de acompanhamento técnico das casas de acolhimento realizam reuniões semanais para reporte de situações e orientações/suporte técnico. Mantém-se igualmente o acompanhamento dos técnicos gestores de cada processo de promoção e protecção de cada criança nas Equipas Multidisciplinares de Assessoria aos Tribunais ou nas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens”.

O número de cuidadores já é reduzido para garantir o normal funcionamento das casas de acolhimento”, alerta Sónia Rodrigues. Com a epidemia de covid-19 e as medidas tomadas para evitar a sua propagação, “os rácios estão muito abaixo dos mínimos.” Sem visitas nem saídas ao exterior e com a acção das equipas que fiscalizam estas casas limitada, também se reduz o controlo sobre a forma como tratam crianças e jovens.

“Falámos com quem está nas casas e sabemos que são confrontados com falta de pessoal”, corrobora Renata Benavente, perita médico-legal e membro da direcção da Ordem dos Psicólogos Portugueses, entidade que preparou um documento com recomendações para estes técnicos cuidarem das crianças e jovens e das suas famílias neste período de covid-19, mas também de si próprios e de outros profissionais que com eles trabalham. Tudo aponta para um maior risco de quem trabalha nestas respostas sociais sentir burnout.

Nem todas as instituições podem fazer como, por exemplo, a Santa Casa da Misericórdia de Albufeira, que transferiu funcionários de uma creche e de um jardim-de-infância para as duas casas de acolhimento, seguindo a orientação que a Segurança Social deu no passado dia 12 de Março. “Já disse a várias instituições para se articularem com os municípios, que têm os recursos humanos das escolas fechadas e bancos de voluntários”, revela a provedora Patrícia Seromenho. Há que ir dando formação a essas pessoas, que prepará-las para entrar em acção. “Não podemos ter apenas atitudes reactivas.” Nunca foi fácil encontrar quem queira trabalhar com estes rapazes e raparigas e não é expectável que o seja agora.

Cada casa terá a sua dinâmica. João Pedro Gaspar, responsável pelo projecto PAJE- Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos, com sede em Coimbra, acompanha a realidade de “duas dezenas de casas” e numas continua a ver equipas coesas, orientadas nos seus propósitos, e noutras equipas desnorteadas, desfalcadas, a caminho da exaustão. “Muitos técnicos e educadores estão a meter baixa.” E mobilizar funcionários de outras valências nem sempre funciona. “Conheço casas em que isso aconteceu e, no dia seguinte, essas pessoas meteram baixa. Este reforço é necessário, mas não não pode acontecer de qualquer maneira, se não vai ser catastrófico.” 

Criatividade e flexibilidade

Usa uma metáfora muito em voga por estes dias: “panelas de pressão”. Os vapores vão por ali acima. Depressa o líquido entra em ebulição. Pode ser grande a tentação de fugir para o mundo ou para um refúgio de um amigo, como tentaram aquele rapaz e aquelas raparigas acolhidas num mini-lar da Fundação do Bonfim, em Braga.

“As casas de acolhimento têm orientações sobre estas matérias, devendo comunicar de imediato às autoridades policiais quaisquer fugas”, refere o gabinete de Ana Mendes Godinho. “Quer seja em situação de regresso de fuga quer de novas admissões, deverão ser asseguradas as recomendações que têm sido emanadas pela Direcção Geral de Saúde”. Quem chega tem de ficar separado dos outros até haver certeza de que não contraiu o vírus.

Para ir aliviando a tal panela de pressão, Patrícia Seromenho recomenda mais criatividade nas actividades, mais flexibilidade nas regras de funcionamento, mais contacto com a família, através de chamadas de voz e de vídeo chamada. Gaspar sugere velhos jogos de tabuleiro, oficinas de escrita de teatro, sessões de cinema com pipocas e debate, clubes de rádio, com cada um a passar a sua música. 

“Toda a situação desafia as instituições a encontrar soluções não imaginadas antes”, frisa Filomena Bordado, da Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade. “Tem de haver uma reinvenção das ocupações”. Inegável, também, é a necessidade de aumentar o número de computadores. “Não havendo um computador por criança, desenham-se horários para que possam ser usados de forma rotativa”, sugere.

Em tempo de aulas, com crianças a frequentar anos distintos, essa gestão complica-se. Algumas instituições estão a apelar à generosidade. É o caso, por exemplo, da Obra do Frei Gil, no Porto: recorreu ao Facebook para pedir computadores portáteis e câmaras para colocarem nos computadores que tem. 

Organização e serenidade 

Não tem de ser um drama. À Ordem dos Psicólogos, diz Renata Benavente, vão chegando informações reveladoras de que, “por enquanto, de um modo geral, as crianças e os jovens estão a aceitar bem as medidas”. “As casas estão a providenciar outro tipo de comunicação com as famílias”, mais frequente, mais longo. “A percepção que temos é que as famílias estão a aceitar bem” a ausência de visitas e saídas.

Ivone Soares de Almeida, directora técnica do Lar Nossa Senhora do Livramento, no Porto, gaba-se da serenidade das 33 raparigas, dos dez aos 23 anos, que ali vivem. Logo no início, falou com elas. “Explicámos que teriam sempre alguém para cuidar delas e que iriam ter sempre contacto com a família. Explicámos que tínhamos um plano de contingência, o que é um plano de contingência, que procedimentos teriam de ter para se protegerem.”

O casarão está dividido por unidades. Cada grupo faz vida no seu espaço. Usam os jardins e o refeitório em horários desencontrados. E sabem que têm de tapar o nariz e a boca quando espirram ou tossem com um lenço de papel ou com o antebraço, têm de lavar as mãos com frequência e de evitar partilhar comida e objectos. Sempre com a supervisão. Com alguns técnicos em regime de teletrabalho, organizaram-se equipas educativas fixas, que se vão alternando a cada quatro dias sem jamais usar transportes públicos.

Com bolsas para frequentar um colégio privado, começaram logo a ter aulas online. A primeira dificuldade foi conseguir computadores. Fizemos uma campanha e conseguimos todos”, revela Ivone Soares de Almeida. A dificuldade, agora, é ter a rede de wifi. “A casa é grande e tem paredes muito grossas.”

Com as férias da Páscoa, novas rotinas se impõem. Pelo menos para já, no Lar Nossa Senhora do Livramento não tem nenhuma história de fuga para contar. “Estão a mostrar capacidade de resiliência. O sentido de união é muito maior. Todas alinham nas brincadeiras e nas piadas.”


 

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