A nação vai mesmo precisar de ser salva?

Dizer que a crise económica que se anuncia impedirá António Costa de governar recorrendo à sua tradicional habilidade para envolver a esquerda é pura especulação. E afirmar que a crise que aí vem vai impor o regresso do bloco central é especulação pura.

Há um detalhe na entrevista de Rui Rio à RTP, esta semana, que é politicamente tão relevante como a ideia de um mais do que provável regresso de um governo de salvação nacional que admitiu. É o momento em que Rui Rio prevê que esse regresso pode acontecer: “Quando vier a economia para o primeiro lugar.” Esta previsão obriga-nos a reflectir com realismo sobre o que será o país depois da devastação da covid-19. Quando deixarmos de ter como primeira preocupação a salvação de vidas e a protecção da saúde. Quando os consensos sobre o confinamento social ou o apoio aos trabalhadores que ficaram sem emprego ou vão para layoff se romperem e a pluralidade de opiniões sobre os rumos do país reemergirem. Quando as decisões do Governo deixarem de ser apoiadas em nome da união indispensável para travar o vírus. Quando a política democrática regressar e for necessário dar respostas difíceis para uma crise económica e social que se anuncia.

O Presidente da República tem razão ao recusar “congeminar sobre um futuro longínquo ou sobre o Governo que estará em funções daqui a não [sabe] quanto tempo”. Porque, de facto, a prioridade “é resolvermos este problema”. E, nesta questão em concreto, há razões para aplaudir a forma responsável como todos os agentes do sistema político e partidário se estão a comportar. Mas há menos de uma década vimos um filme que também começou assim – quando, primeiro, os maiores partidos assinaram o memorando de entendimento que permitiu o resgate económico e financeiro do país e a entrada em cena da troika. Sabemos o que veio a seguir: o país caminhou para um clima de natural crispação política imposta pela severidade da crise e para a também natural divergência de opiniões sobre a melhor forma de a combater.

Não tenhamos dúvidas que esse clima de severa oposição vai regressar, com uma diferença: António Costa, ao contrário de Pedro Passos Coelho, não dispõe de uma maioria parlamentar para governar numa conjuntura que se adivinha ser especialmente difícil. Dizer que esse grau dificuldade impedirá António Costa de governar recorrendo à sua tradicional habilidade para envolver a esquerda é pura especulação. Afirmar que a crise que aí vem vai impor o regresso do bloco central é igualmente especulação pura. O que vale a pena notar é que Rui Rio não receia prever o mais do que provável cenário de crise e de austeridade, nem dispor o seu partido para a necessidade de integrar um governo estável. Na política, como na vida, as visões a prazo ajudam por vezes a encontrar respostas aos obstáculos que se adivinham. 

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