Orçamento e soberania

As contas certas, que parecem continuar a incomodar alguns, libertam recursos para o que é preciso fazer.

A proposta de Orçamento do Estado para 2020 incorpora uma forte aposta no papel do Estado Social na promoção de uma sociedade decente: reforço do SNS, combate à pobreza e às desigualdades, maior esforço público da última década em investimento estruturante, valorização da Administração Pública. Sabemos que o programa da legislatura não se cumpre todo num ano e que muito terá de continuar a ser feito. Contudo, é politicamente pouco sério tentar afunilar o debate ao tema do saldo orçamental e fantasiar que os pouco mais de 500 milhões de euros previstos como excedente seriam a chave para fazer tudo o que falta fazer a prazo. Não é: é menos do que os cerca de 600 milhões de euros que representam o alívio do peso dos juros no défice de 2018 para 2019 (no défice de 2019, os juros pesaram menos 0,3% do PIB do que em 2018).

As contas certas, que parecem continuar a incomodar alguns, libertam recursos para o que é preciso fazer. Pagar, em 2019, menos 2120 milhões de euros em juros do que em 2014, liberta recursos muito necessários. E para isso contribui o aumento da credibilidade da República, um resultado concreto de políticas bem-sucedidas. A nossa taxa de juro tinha, em 2015-2016, 100 a 200 pontos base de diferença (a mais) face a Espanha e a Itália. Agora, está idêntica à de Espanha (que também desceu) e 100 pontos abaixo da Itália.

Dizer que o excedente é lucro é uma forma de demagogia que explora o desconhecimento dos mecanismos orçamentais. Contabilisticamente, pagar uma dívida não aumenta o défice nem diminui o excedente. O superavit não é lucro, é a medida da redução do nosso endividamento; assim como défice não é prejuízo, é a medida em que passamos para o futuro o pagamento da despesa que fazemos hoje.

Somos mais livres, como país, com menos dívida. E qualquer défice acarreta sempre mais dívida. Estranho que a esquerda patriótica, e às vezes até um tanto nacionalista, que concebe a soberania nacional de forma tradicionalista, ao ponto de desconsiderar as vantagens da integração europeia, acabe por desprezar os graus de liberdade que ganhamos diminuindo a dívida da República, que é principalmente dívida externa.

Não é só pagarmos menos juros, já de si importante. Diminuir a dívida soberana é ficarmos menos dependentes da conjuntura internacional, menos expostos a uma crise, é termos mais liberdade para ter défices quando a conjuntura o exija, porque há momentos em que o défice é benéfico. Isto não é “seguir as imposições de Bruxelas": isto é proteger o país e alargar a nossa margem de autonomia, isto é acautelar o nosso Estado Social e proteger a capacidade dos nossos mecanismos de proteção social. Assim continuamos o trabalho da legislatura anterior, quando reduzimos o peso da dívida pública no PIB de um máximo de 132% para cerca de 120%.

Certos partidos de esquerda solicitaram intensamente o eleitorado para não dar ao PS uma maioria absoluta, porque estariam desejosos eles próprios de ajudar o PS a prosseguir o caminho da anterior legislatura. Seria, agora, desejável que não esquecessem a responsabilidade de continuar a libertar recursos para reforçar o Estado Social, de forma sustentável e assente numa noção funcional de soberania. Menos constrangido pela circunstância internacional, o país será mais dono das suas opções políticas. Menos endividado, o país será mais livre.

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