Sul, o merecido elogio (sem spoilers)

Sul constrói-se na anamnese do povo luso, na crise que pode estar sempre aí ao virar da esquina, da nossa triste sina, porque aqui seremos sempre o povo amargurado que lava no rio a alma de quem, dizem, pouco fez e já tanto viu.

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“Sul”

“Estás a sentir este ar? É a liberdade, amor, a liberdade.” Pisca à esquerda e a marcha pela ponte 25 de Abril segue em direcção a sul, num velho carro que leva um jovem casal a desaparecer do plano. Fica implícita a metáfora escolhida pelo realizador Ivo M. Ferreira para traduzir a mudança de direcção que ocorreu no nosso país. Agora é o tempo (pós-crise?) de olhar para trás e tentar perceber o que realmente nos aconteceu. Um país manietado pela “troika”. Se a ausência e o distanciamento nos permitem compreender melhor as coisas, este é o tempo para a história ser (re)escrita. Agora que ganhámos o tempo para pensar, recuperar a dignidade de viver e não apenas sobreviver, devemos aprender a usar o elogio para com os nossos.

Guiados pelo transe da guitarra melancólica de Tó Trips e Pedro Gonçalves, voltamos a mergulhar na combinação mortal, entretanto esquecida, do desemprego, dos cortes e das depressões-recessivas. Metia medo sempre que havia discurso em directo. A aspereza no ar, que todos respirávamos, convivia com quem lucrava, fechado nos confins das mansões que nem sonhamos existir no nosso país. Nestes tempos, a ganância prevalece. Tudo isto se encontra em Sul.

Apesar da descrença e desmoralização da gente, alguns mostraram ser possível vencer, apesar do contexto. O contexto determina a mudança dos tempos. A bonança veio abraçada a Centeno, Marcelo e ao golo do Éder. Porque a bola que rola é o mundo, Éder, tornou-se o negro mais celebrado pelo país. A geringonça, o turismo e a Lisboa que já não escreve a história de Wenders trouxeram-nos de volta o tesão.

Sul constrói-se na anamnese do povo luso, na crise que pode estar sempre aí ao virar da esquina, da nossa triste sina, porque aqui seremos sempre o povo amargurado que lava no rio a alma de quem, dizem, pouco fez e já tanto viu. Transformar o sofrimento vivido por inteiro em reflexão, aprendizagem e clareza é a lição cristalina de uma série que merece ser vista por todos.

Quantos sentiram o frio da faca afiada a roçar bem perto da jugular? O empréstimo da casa, a pensão ou os cortes. Em qualquer discussão gritava-se o argumento capital “Não há dinheiro!”. Afinal, para onde foi o dinheiro? Por várias razões fomos, intencionalmente, pouco expostos à multiplicidade de possibilidades que existiam para ultrapassar os negros anos. O que ouvíamos: gastámos demais, por isso recebíamos de menos e o cinto só podia ser apertado. E a camisa para dentro, ok? Ou não queremos ser o bom aluno?

Mencionemos o óbvio: a crise funcionou como desculpa para acentuar desigualdades. A Europa dividiu-se. Dizia-se lá por cima que o Sul estava desnorteado. A sociedade dividiu-se. Quem tinha trabalho valorizava tal luxo — e quem não tinha pois que emigrasse ou arranjasse algum esquema. As famílias dividiram-se. Os mais velhos tinham usado e abusado do Estado Social e os mais novos nem sabiam o que a vida custava. Subsídios, direitos adquiridos e férias tornavam-se palavras envergonhadas. Afinal, a certeza que os sábios financeiros traziam na carteira sempre que se dirigiam a sul não resultou.

Convencem-nos que para a cultura estará sempre destinado um por cento de migalhas, não é? Sul, onde está alojada a alma do país, é prova que a identidade e história são construídas e compreendidas através da Cultura. Com menos somos capazes de fazer mais, agora imaginemos o que faríamos cheios de graça. A RTP (e a plataforma Play também), o Ivo M. Ferreira e a sua equipa e Portugal merecem um elogio. Recordemos o desgoverno (nem ministério da cultura havia) que todos aguentámos, apoiados nas palavras de Sophia: “E quando a palavra da poesia não convier à política, é a política que deve ser corrigida.” E, pelo menos a Sul, está a ser. Muito lentamente, mas está a ser.

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