O que faço eu com esta receita que chegou da China?

O desafio do Gelinaz, uma espécie de festival internacional de troca de chefs de cozinha, foi este ano diferente: era preciso cozinhar uma refeição inteira com receitas vindas de um restaurante do mundo cujo nome só era conhecido no fim. Em Lisboa, o Loco viveu uma noite “louca”.

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Alexandre Silva teve que cozinhar com ingredientes que habitualmente não usa no Loco Nuno Ferreira Santos

Alexandre Silva passou a terça-feira, dia 3 de Dezembro, a ver entrar pelo seu restaurante, o Loco, no bairro da Estrela, em Lisboa, ingredientes com os quais tinha dito que nunca iria cozinhar ali. Mas desta vez era diferente.

O Loco foi um dos quatro restaurantes portugueses a participar no The Grand Gelinaz! Shuffle, uma ideia do gastrónomo franco-italiano Andrea Petrini, que este ano tinha um conceito novo: cada restaurante participante (e foram 138 de 38 países de todo o mundo) recebia um conjunto de receitas de outro restaurante, cujo nome só era revelado no final, e tinha que as cozinhar para um jantar especial.

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Quando chegámos ao Loco, ao meio-dia, a equipa já estava em grande actividade a preparar os vários produtos que enchiam a bancada. Alexandre, sentado numa mesa, trabalhava no computador. “Uma coisa é viajar para outro país e cozinhar lá”, diz. “Outra é receber oito receitas para fazer aqui. E eu tive sorte, porque outros colegas meus receberam poemas e citações. É difícil trabalhar assim.”

Há dois anos, na anterior edição do Gelinaz, Alexandre tinha apanhado o avião até à Lumi Island, no estado de Washington, EUA, para cozinhar os seus pratos num restaurante local. Desta vez tinha oito receitas com as quais, percebemos logo no início da conversa, não se identificava inteiramente. “Não sabemos qual é o restaurante, mas suspeitamos, por causa de uma foto de um dos pratos que encontrámos no Instagram”, confessa. “Se for o que pensamos, fica na China e tem um estilo de cozinha com muita influência francesa”.

Nuno Ferreira Santos
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A ideia é que o chef, quando recebe as receitas (as de Alexandre e dos outros portugueses foram também enviadas para diferentes restaurantes algures no mundo), investigue, procure os ingredientes, se for possível encontrá-los no seu país, e tente executá-las, mantendo, no entanto, uma margem de liberdade para poder alterá-las.

É isso que Alexandre vai fazer, até porque, diz, “testámo-las todas e 60% não funcionam”. Por exemplo, o tofu de amêndoa, que é logo o primeiro prato, não tinha a consistência necessária e abatia. Foi preciso colocar bastante mais amêndoa do que a receita indicava. Noutros casos é o lado estético que choca com o estilo do Loco. “A sobremesa é de ameixa, muito bonitinha”, resume. No final, vai ter os mesmos ingredientes e os mesmos sabores, mas ser muito mais próxima de algo que o Loco poderia criar.

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Mas, apesar das dificuldades, Alexandre reconhece que esta é uma experiência que vale a pena. “O desafio é pôr-nos a pensar até que ponto estamos ligados uns aos outros através da comida. E concluímos que não é tão diferente assim, é como a matemática ou a música.”

Na cozinha, uns estão a abrir as castanholas (usadas em substituição dos abalones da receita original, que teriam que vir dos Açores e não iriam chegar em tempo útil), outros a preparar os lavagantes (um dos produtos que Alexandre não usa habitualmente), outros lutam com um desafio particularmente difícil, que é o de fazer uma placa fina e crocante a partir de pele de leite, para servir com o prato de pombo, com uvas e folhas de mostarda. 

Para contornar produtos como o caviar e as vieiras, que vinham nas receitas recebidas, Alexandre recorreu a truques que já tinha usado no passado: o caviar é feito a partir de sementes de mostarda com tinta de choco, e as vieiras são também de choco e só levemente marcadas pelo fogo. Por fim, um prato que descreve como “uma espécie de risotto de frango” foi transformado numa cabidela com cuscos de Trás-os-Montes, acompanhada por codorniz.

A meio da nossa conversa, chegou uma caixa com pombos. Não foi fácil conseguir os animais em pouco tempo, mas acabaram por chegar, tem é que se ter cuidado porque trazem chumbos. A tarefa seguinte era depená-los, e o sous-chef João Alves e o seu ajudante Gonçalo Freire dedicaram-se a ela sem perder tempo, sentados à porta do Loco, a arrancar penas para dentro de sacos de plástico.

Deixamo-los aí, prometendo voltar pelas cinco da tarde. Por essa altura já os pombos estão devidamente depenados e as preparações bastante mais adiantadas. Barulho do aspirador a concorrer com a música de fundo na cozinha, o sous-chef pendurado num escadote, sente-se algum nervosismo no ar, por entre muita concentração. João Marujo, o chefe de sala, avisa que está a aproximar-se a hora de preparar as mesas. “O tofu de amêndoa tem que ir para o frio”, avisa alguém. 

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Alexandre, sempre com um ar muito calmo, está a escolher as louças. Thomas Domingues, o sommelier, na sua noite de estreia (veio do Cave 23 e começou a trabalhar no Loco precisamente no dia do Gelinaz) já fez uma pré-selecção dos vinhos e junta João Marujo e Sérgio Caldeira, o assistente de sala, para fazer a prova. Saem os primeiros pratos, em versão pequena, para a prova de harmonização. Os vinhos escolhidos mostram-se à altura, apesar de a mistura de sabores ser complexa. Enfim, tudo certo e pronto para avançar.

Antes das 19h30, a hora prevista para o início do jantar, já há clientes sentados nas mesas. À mesma hora, em Lisboa, outros restaurantes – o Alma de Henrique Sá Pessoa, o Belcanto de José Avillez, e o Prado de António Galapito – iniciam também os seus jantares, com os menus recebidos dos parceiros-mistério espalhados pelo mundo. No Loco, Alexandre Silva aproxima-se de uma mesa. “Este é o primeiro prato de um menu que nós fizemos de um restaurante que não conhecemos”, apresenta-se, a si e à ideia inusitada que torna este jantar especial. 

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Os pratos sucedem-se, comenta-se como é difícil perceber sequer de que zona do mundo poderão ser as receitas. Confirma-se assim que a gastronomia se globalizou, com os produtos de uma região do planeta a misturarem com os de outra em grande familiaridade. Vai ser preciso esperar pelo final da refeição para o “momento Agatha Christie”, em que será revelado, neste caso não o assassino mas o autor das receitas que inspiraram o jantar. Finalmente, esse momento chega: a responsável pelo que comemos chama-se Vicky Lau e está longe dali, em Hong Kong, no seu restaurante Tate Dining Room. Das suas receitas em versão Loco, vai receber as fotos. Quanto ao sabor, nunca saberá como ficou. 

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