O homem que transforma chefs em estrelas

O italiano Andrea Petrini, escritor, jornalista, curador de eventos gastronómicos, acha que os restaurantes são “culturalmente autoritários”. Gosta de provocar porque o que é igual, previsível, conservador e conformista aborrece-o.

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As revistas Vogue e Time chamam-lhe “O deus da comida”. A Time colocou-o mesmo no primeiro lugar do seu panteão das 13 personalidades mais influentes no mundo da gastronomia — num texto acompanhado por uma fotografia em que Andrea Petrini olha atentamente, com ar estudioso e através dos óculos de grossas hastes de massa, que são a sua imagem de marca, para um prato num restaurante de Lyon, enquanto toma notas num pequeno caderno.

É descrito (ainda citando a Time) como um bon vivant e um espírito livre e “possivelmente o homem mais poderoso no universo do fine-dining”. Vem do mundo da cultura, foi jornalista cultural do Libération, conhece todos os grandes chefs da actualidade e é capaz de os desafiar a apanhar um avião e a viajar muitas horas para o outro lado do mundo para cozinharem num restaurante de outro chef. Eles vão porque Andrea Petrini sabe criar acontecimentos (esta troca mundial de chefs acontece no âmbito do seu projecto Gelinaz, que se propõe “correr riscos como ponto de partida”). Tal como sabe descobrir talentos e promovê-los, escrevendo artigos sobre eles para grandes revistas internacionais.

Mas Petrini anda inquieto. Como diz nesta entrevista, está farto dos restaurantes clássicos que não mudam há 300 anos. Acha-os pouco democráticos e demasiado “autoritários”. É altura de se derrubar essas paredes e de transformar o restaurante noutra coisa, mais livre — mais livre para os chefs e para os clientes. Não sabe qual é o caminho, mas acredita que se for provocador vai despertar os cozinheiros para que estes inventem uma nova forma de restaurante. Como diz o manifesto do Gelinaz, é preciso “adaptarmos-nos a situações incertas e explorar novos territórios”, ao mesmo tempo que “nos aproximamos da beleza da natureza, do seu caos elegante e do seu prazer interminável”.

Este italiano, que gosta de vestir calças coloridas e camisas com estampados espalhafatosos, casado com uma francesa e a viver em Lyon há muitas décadas, e que é também o presidente para França do The World’s 50 Best Restaurants, esteve em Lisboa para conhecer melhor — e escrever sobre — o trabalho de Leonardo Pereira, que veio do Noma de Copenhaga, considerado um dos melhores restaurantes do mundo, para as cozinhas do hotel Areias do Seixo, próximo de Torres Vedras.

Conhecemo-lo uma noite, na véspera desta entrevista, à volta de uma das mesas da Taberna da Rua das Flores, em Lisboa. André Magalhães, um dos donos da taberna, não parava de trazer os mais variados petiscos perante o entusiasmo crescente de Andrea Petrini, que, a certa altura, pegou no telefone e ligou para um dos mais famosos chefs do movimento da comida de bistrô em Paris actualmente, Inaki Aizpitarte (Le Chateaubriand), para lhe dizer: “Chef! Não resisti a ligar-lhe. Estou num sítio que você ia adorar.”

E, de seguida, tirou os seus óculos de massa, colocou-os ao lado de um prato e fotografou o conjunto com o seu telemóvel. É a marca Petrini (os óculos, recortados, aparecem também nos seus cartões de visita). Onde ele pousa os óculos, alguma coisa acontece.

É jornalista, tem um percurso ligado à cultura, quando é que o tema da comida entra na sua vida?
A minha mãe era uma dona de casa de uma família popular, cozinhava duas vezes por dia. Ela era de perto de Roma e nós vivíamos em Ancona, junto ao mar. Era uma casa humilde e ela fazia as coisas normais, gnocchi, sardinhas, pasta, e eu gostava muito da comida. Quando tinha uns 11, 12 anos… sabe aquela altura em que fugimos de casa? Acabei em Bolonha sem dinheiro nem um lugar para dormir. Fui a uma osteria comer uma pasta. Pensei ‘o que é que está a acontecer?’, porque em Bolonha usam manteiga para cozinhar, enquanto em Ancona e Roma era azeite. O sabor era diferente. Foi a primeira vez que percebi que se podem fazer diferentes pratos como formas de expressão.
Quando era estudante e trabalhava no teatro, não tinha dinheiro, mas sempre que ganhava algum gastava-o todo nos restaurantes. Mais tarde, casei e fui viver para França. Lembro-me de um dia ter descido as escadas para ir comprar cigarros e ter visto uma revista, The City Magazine, de luxo, 95% a preto e branco, ricamente ilustrada e com longos artigos sobre design, arquitectura, moda, arte e literatura. Na capa do primeiro número estava um dos meus escritores favoritos, Christopher Isherwood. Comprei-a, pensando ‘fuck, é uma boa revista’. Um mês depois comprei o segundo número e era [o realizador e encenador francês] Patrice Chéreau que estava na capa. Ao fim de três ou quatro números, encontrei dentro um pequeno cartão pedindo as nossas opiniões sobre os temas tratados e perguntando se tínhamos sugestões. Eu respondi perguntando porque é que não faziam uma história sobre o Magazzini Criminali, um grupo de teatro italiano muito avant-garde que é fantástico. Um mês depois recebi um telefonema. O editor tinha estado a ler todos os cartões, tinha achado que o grupo italiano parecia interessante e perguntava porque não escrevia eu a história.
Durante duas semanas escrevi essa longa história, que foi a primeira que fiz em francês. Ele ligou-me, disse que estava fantástica, que ia ser publicada na próxima edição, e se eu tinha mais ideias. Um dia fui ver a caixa do correio e encontrei uma carta com um cheque com uma quantia que era muito elevada naqueles dias. Nunca me tinha acontecido, nem sequer tinha pedido para ser pago, tinha pensado que um dia me enviariam um papel dizendo que me iriam pagar daí a seis meses, como fazem em Itália. Fiquei alucinado, subi as escadas a correr, quando recuperei o fôlego liguei-lhes e disse que ia a Paris na semana seguinte e tinha algumas ideias que gostava de lhes propor. E assim comecei a trabalhar para eles.
Fiz muitas entrevistas, perfis de pessoas como [o realizador] Peter Greenaway, [o músico] Brian Eno, fui ao estúdio do Peter Gabriel quando ele estava a terminar um álbum. Só que eles, na revista, não estavam absolutamente nada interessados em comida. Naqueles dias os restaurantes eram os clássicos, com os clássicos chefs franceses, era uma coisa totalmente fora de moda.

Mas queria escrever sobre comida?
Sim. E insisti várias vezes, até que lhes disse “ouçam, estamos a trabalhar juntos há cinco anos, quando eu vos proponho uma coisa sobre um obscuro realizador, como na altura era Derek Jarman, vocês não o conhecem mas confiam em mim. Por favor, confiem em mim nisto também”. E mostrei-lhes o primeiro livro do [chef e na altura enfant terrible da cozinha britânica] Marco Pierre White. Acabei por fazer a história, que foi a primeira em França sobre Marco Pierre White. 
Nessa altura eu trabalhava para o Libération e, a pouco e pouco, isso foi ganhando mais importância em termos de trabalho diário. Enquanto isso, escrevia sobre comida para outras revistas, em França, em Itália. Agora faço isto há 25 anos, mas é tudo graças a Marco Pierre White.

Entretanto as coisas mudaram muito, a comida ficou na moda.
Há 25 anos só se encontrava, à excepção de algumas revistas especializadas, pequenas peças sobre restaurantes nos jornais diários aos fins-de-semana. Tradicionalmente, as pessoas que escreviam sobre comida eram as que não eram suficientemente boas para escrever sobre política, economia, cultura, sociedade. Além disso, depois do final da II Guerra, os que estavam de alguma forma comprometidos porque tinham trabalhado com os alemães, não foram afastados, ficaram e recuperaram o trabalho no jornal diário em que trabalhavam antes. Mas eram escondidos. Não se podia pôr uma pessoa que tinha sido apoiante dos nazis a escrever novamente sobre assuntos políticos. Na altura havia alguns, pelo menos quatro ou cinco, antigos apoiantes da extrema-direita que escreviam sobre comida.
Por isso, a escrita sobre comida foi sempre algo muito ambíguo. Quando eu trabalhava no Libération, tinha de usar para muitos artigos [sobre gastronomia] um pseudónimo, porque não era bem visto que uma pessoa que escrevia sobre livros e filmes escrevesse também sobre comida. O food writer era marginalizado. Se és um filósofo, não te ocupas de comida, se és um crítico de arte, que raio estás a fazer a escrever sobre comida?

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A escrita que existia era apenas a crítica gastronómica? Não existia outro tipo de abordagens, como existe hoje?
Sim, eram peças opinativas, “o lagostim admiravelmente cozinhado, o serviço muito bom, a lista de vinhos extensa”, sim, muito opinativo. E continua a ser assim.

Como leitor, que tipo de artigos lhe interessa?
Quando comecei a escrever artigos longos sobre comida, foram sobretudo perfis de chefs como se estivesse a escrever o perfil de [escritores] Martin Amis ou Ian McEwan. Fiz alguns artigos opinativos sobre restaurantes, mas não é isso que me interessa.

Perguntava-lhe enquanto leitor.
Basicamente não há muita literatura interessante sobre comida se excluirmos algumas revistas internacionais como a Lucky Peach, a Fool ou a Cook Inc. E mesmo estando a comida hoje muito na moda, não me parece que a abordagem que existe em relação a ela seja suficientemente aberta. A Lucky Peach é uma óptima revista mas é muito americana. As peças que gosto de ler são as que Adam Gopnik ou Bill Buford escrevem para a The New Yorker, mas não encontramos isso todas as semanas.

São artigos em que a comida aparece integrada num contexto mais alargado?
Sim, num contexto cultural. Ninguém escreve sobre a relação entre a comida e a política, por exemplo. Há uns anos, no dia das eleições francesas, descobri que, com apenas três excepções, todos os chefs votavam em Nicolas Sarkozy e na direita. 
E há outros temas, como a relação entre a cozinha e a economia ou a forma como o restaurante tem evoluído pouco e é ainda hoje um lugar onde se tem cada vez menos liberdade, onde o ego do chef domina tudo, onde nos alimentam como um pato, “experimente isto ou aquilo”, menus cada vez mais longos, “este vinho vai bem com isto, é o pairing perfeito”. Culturalmente, para mim, é muito autoritário.

Sente que hoje perde a sua liberdade num restaurante?
Os clientes perdem, sim, não eu em particular mas toda a gente.

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Vivemos há 300 anos com a mesma ideia de restaurante... Alguns chefs começam a fazer uma pequena maquilhagem, tirando as toalhas de mesa ou dispensando o sommelier antiquado

Era uma experiência melhor ir a um restaurante quando era jovem em Itália?
Hoje, se vamos a um restaurante fino, com estrelas, de preço moderado a caro, sabemos que é um sítio pensado para um certo tipo de clientes, uma certa classe de pessoas que podem pagar 200, 300 ou 400 euros por uma refeição. Mas todo este sistema de classe nunca foi estudado. É possível fazer um tipo de restaurante em que não nos sintamos pressionados, aberto a um círculo mais alargado de clientes, sem necessariamente ser um bistrô, mas que seja menos ambicioso, menos experimental?

Acha que essa é uma possibilidade de evolução?
Acho. Hoje todos querem ter uma horta no cimo do restaurante. Alain Passard [chef francês do L’Arpége], Michel Bras [do restaurante com o mesmo nome, em França], René Redzepki [do Noma, em Copenhaga] que quer abrir uma quinta urbana… Podemos ver nessa vontade a necessidade de melhorar ou abrir ligeiramente o quadro em que funciona o restaurante.
Até agora, os chefs têm estado mais entretidos com a ideia de salvar o mundo, salvar o planeta, fazer alguma coisa contra o aquecimento global, as mudanças climáticas, salvar os camponeses no Peru. Para mim, isso é apenas fumo, porque se olharmos para o mundo, alguns podem queixar-se um pouco, mas a maioria deles, incluindo os mais jovens, trabalham para uma classe específica. Virgílio Martinez [do restaurante Central, em Lima] pode ir buscar os produtos à Amazónia e ajudar a melhorar a vida de alguns camponeses, mas as pessoas que vão aos seus restaurantes e pagam são a classe média-alta com dinheiro.

Mas desde que surgiram, no século XVIII em França, que os restaurantes com mesas individuais e um tipo de serviço e de comida mais sofisticados se destinam a um determinado tipo de pessoas, as que podem pagar por eles.
Sim, vivemos há 300 anos com a mesma ideia de restaurante. Não tenho a solução, mas talvez seja altura de pensarmos em algo que ajude à evolução da ideia de restaurante. Alguns chefs começam a fazer uma pequena maquilhagem, tirando as toalhas de mesa ou dispensando o sommelier antiquado, mas são coisas muito pequenas.

E nós, jornalistas, não alimentamos também isso quando escrevemos sobre os chefs e os restaurantes que são especiais, que fazem coisas únicas e portanto acessíveis só a alguns?
Sim, ao criarmos os chefs-estrela, temos alguma responsabilidade nisso. Como o crítico de rock que há cinco anos começou a escrever artigos sobre uma banda desconhecida e agora essa banda passou dos pequenos clubes para os estádios. Sim, o crítico contribuiu para isso, mas também para descobrir e analisar o fenómeno. Há sempre um lado negativo e um positivo. Mas penso que o universo gastronómico hoje em França, Itália, é ainda muito conservador.

É presidente para França do The World’s 50 Best Restaurants [a lista dos melhores restaurantes do mundo criada pela revista britânica Restaurant], uma iniciativa que é criticada precisamente por alimentar esse star system. Os melhores restaurantes do mundo estão sob grande pressão para serem sempre diferentes e especiais. E exclusivos, claro.
Acho que os 50 Best fizeram um excelente trabalho contribuindo para mudar um pouco a situação, o atlas geopolítico da cena gastronómica. Nos primeiros anos era uma piada entre amigos, mas quando perceberam a enorme base criada com as primeiras edições começaram a melhorar o sistema de votação e fizeram um trabalho fantástico porque chamaram a atenção para chefs desconhecidos de países menos valorizados.
Não podemos esquecer que até há 15 anos a cena gastronómica era 90% francesa, não havia nada fora. As coisas começaram a mudar quando surgiu [em Espanha] um estranho restaurante chamado El Bulli. Os 50 Best chegaram, a Internet chegou e muitas coisas mudaram.
Claro que passou de uma pequena estrutura feita por uma pequena revista, agora cobrem a Ásia, a América Latina, vão para os EUA, é uma marca que quer ser global. As perguntas que toda a gente faz são “porque é que ganham sempre os mesmos e como é que os restaurantes conseguem entrar na lista?” Temos de olhar para o mundo: houve duas grandes guerras no Iraque e uma crise económica que ainda não passou. Há 20 anos, se escrevesses para o New York Times, terias o poder de, à tua conta, ir a uma série de grandes restaurantes de topo em França. Hoje, se ainda tiveres um emprego num grande jornal e tiveres a oportunidade de ir a Paris, podes ir a um ou dois grandes restaurantes, mas não podes apresentar uma conta ao departamento comercial. As pessoas vão talvez a um muito bom e depois tentam ir a outros mais baratos. Viajar tornou-se também mais fácil com as low cost. Há 15 anos as pessoas não viajavam tanto para ir a um restaurante. Faz tudo parte do efeito 50 Best.
Por outro lado, é mais fácil para os 30 votantes dos EUA, Japão ou Peru ir a restaurantes em Paris, Londres, Madrid ou Barcelona do que ir para o meio de França, ao Michel Bras, ou ao meio do México. Quem tem restaurantes mais acessíveis, nas grandes cidades, é privilegiado porque é mais fácil chegar lá.

Ao mesmo tempo, há fenómenos como o Faviken, que fica no meio de nada, na Suécia, e onde as pessoas vão de propósito porque é uma experiência exclusiva.
Sim, mas quando se está num país como a Suécia ou o Peru, em que há apenas alguns restaurantes que são muito bons, suponho que os votantes os escolhem, naturalmente. É mais difícil em França, onde só em Paris temos dezenas e dezenas de bons restaurantes que poderiam ter um lugar na lista.

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Não concorda que a lógica do World 50 Best constitui uma pressão sobre os restaurantes para serem diferentes de alguma forma?
Não necessariamente.

Se o Noma [que foi já considerado o melhor restaurante do mundo] continua a fazer o mesmo que faz há 15 anos, não há o risco de as pessoas perderem o interesse?
Acho que não. O que mudou é que há 15 anos os congressos não existiam. Agora temos chefs que passam metade do seu tempo de congresso em congresso só para espalhar a boa nova do seu restaurante e atrair mais pessoas.

Ferran Adriá [o fundador do El Bulli, entretanto já encerrado] sentiu a necessidade de fazer alguma coisa diferente [tem o projecto de abrir uma fundação], Redzepi também [vai mudar o Noma para uma quinta urbana], [o chef brasileiro] Alex Atala diz que todos temem não parar no momento certo. Conhece todos os chefs dos maiores restaurantes do mundo. Sente neles essa inquietação?
Lembro-me de, em 2009 ou 2010, Redzepi dizer que não ia fazer o Noma toda a vida, não ia repetir-se. Há 15 anos, os chefs começaram a ir para o Japão [o Noma mudou-se para lá durante alguns meses], mas quando se faz isso com toda a equipa não é por razões económicas, é para aprender alguma coisa de novo e melhorar o que se faz.
Há, mesmo que de uma forma um pouco escondida, esta necessidade de derrubar as paredes do restaurante e ser transportado para situações diferentes. Não é como o velho mestre francês fazendo sempre os mesmos pratos até ao último dia da sua vida. É um tipo de “nomadismo” — estou a brincar com as palavras — mas é sinal de que de alguma forma eles sentem que o formato do restaurante pode ser limitativo ou pode voltar-se contra eles, obrigando-os a repetir-se numa rotina. É a síndroma da página em branco para quem escreve. Se os chefs o têm, também é um bom sinal.

Criou o Gelinaz, um projecto internacional envolvendo vários chefs e que pretende agitar as águas através de iniciativas criativas e “fora da caixa”. Isso também está relacionado com essa ideia de um grande teatro mundial em torno da cozinha?
Começou há dez anos como uma piada. Nessa altura, o mais distinto restaurante em Itália era o Gambero Rosso, de Fulvio Pierangelino. O Fulvio é uma personagem — não gostava de congressos, estava no auge da sua carreira e tinha sido convidado desde há muitos anos para ir [aos congressos gastronómicos] a San Sebastian ou ao Madrid Fusion.
Eu estava de férias perto da casa dele e encontrávamo-nos frequentemente. Um dia ele disse “preciso de encontrar uma boa desculpa para não ir ou uma ideia para fazer uma coisa diferente”. Ele era conhecido por ser um grande chato, sempre com 300% de certeza de que os outros estavam a copiar-lhe as receitas. Nessa noite tive uma ideia: e se, pela primeira vez na vida dele, Fulvio der uma receita, mas a outros chefs, que estão em palco com ele, e os outros, seguindo a receita, a fizessem cada um à sua maneira? É como outros músicos pegarem numa partitura de Duke Ellington e fazerem a sua versão, com resultados diferentes. No dia seguinte disse-lhe “tenho uma ideia que acho que vais detestar” e ele disse que poderia resultar. Fizemos assim o primeiro Gelinaz.
Mais tarde fizemos outra performance para um grupo restrito de pessoas: pegámos numa receita e as pessoas deveriam comer oito vezes o mesmo prato. No final de 2007, fizemos um Gelinaz no Noma e a seguir, por uma série de razões, parámos durante alguns anos. Depois decidimos fazê-lo renascer e levá-lo mais longe para ver o nível de resistência das pessoas: quantas versões de um mesmo prato se pode apreciar e compreender verdadeiramente? Trouxemos mais chefs para o grupo e tornou-se esta coisa muito difícil de organizar, sem dinheiro nenhum. Tentamos fazê-lo uma ou duas vezes por ano, e de cada vez fazemos algo diferente. Estamos a planear fazer um em Istambul com 30 chefs, cinco dos quais turcos, e estamos a trabalhar com críticos de arte e com dez artistas contemporâneos turcos para um evento em que a comida se vai misturar com a arte.
E há a troca dos chefs [cada um voa para outro país para ocupar durante quatro noites o restaurante de outro chef].

Não é exactamente um festival. O que lhe chamam? Uma performance?
Sim, alguns são mais uma performance. Outros são quase uma festa-surpresa. A troca de chefs é diferente porque acontece ao mesmo tempo em vários restaurantes. Quando [o chef da Osteria Francescana, o italiano Massimo] Bottura vai a um festival em São Paulo, vai com um assistente, volta, e a equipa que esteve na cozinha e não viu nada, pergunta como é que correu, mas fica frustrada. Se ele vai a Nova Iorque para a troca do Gelinaz, é mais “o chef convidado visita o restaurante onde a equipa tomou conta da cozinha”. É como virar de cabeça para baixo o funcionamento do restaurante. A equipa é como os amotinados do Bounty que tomam conta do navio.

Faz tudo parte dessa ideia de derrubar as paredes e os limites dos restaurantes? E o seu papel nisto tudo é o de curador?
Nos meus novos cartões-de-visita, está escrito escritor+curador gastronómico.

E o que veio fazer a Lisboa?
Vim a Lisboa há uns anos e regressei em Abril para vir ao Sangue na Guelra [evento sobre jovens chefs integrado no festival Peixe em Lisboa], e soube que o tipo que tinha conhecido no Noma há muitos anos tinha regressado a Portugal e iniciado um projecto próprio [Leonardo Pereira]. Decidi que queria voltar para conhecer melhor esse projecto. Da outra vez fui lá, mas foi muito rapidamente. Podia ter feito uma crítica gastronómica, mas quem é que quer saber de críticas gastronómicas? Resolvi voltar, passar mais tempo com ele e fazer uma história longa para uma revista italiana. Foi por isso que vim.
Depois fiquei uns dias em Lisboa para conhecer melhor algumas coisas e ver o que se passava. Se eu fizesse parte da diáspora portuguesa dos chefs, regressava a Portugal, aqui os produtos são fantásticos, há uma cada vez maior atenção à comida e tenho a certeza de que daqui a poucos anos Portugal vai ter alguns restaurantes verdadeiramente de topo.

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Vivemos num mundo em que se vamos a um fine-dining em França ou Itália, em Portugal ou nos EUA, sabemos que vamos comer mais uma vez foie-gras, vieiras e terminar com pombo. Há um conformismo

O que se passa aqui é semelhante ao que se passa noutras cidades. Há sempre a velha pergunta: como é que nos podemos distinguir e fazer com que reparem em nós?
Simplesmente sendo como são. Não sou um especialista em Portugal, mas vejam o que fizeram com a literatura, o cinema, os incríveis realizadores que tiveram e que continuam a ter, Miguel Gomes acaba de estrear pela Europa uma trilogia com 7,5 horas. Pensem em Lisboa, que é uma cidade muito bonita e tem a reputação de ser uma capital jovem com uma vida cultural, músicos e artistas.
Sinto aqui o mesmo que sentia em Berlim poucos anos depois da queda do Muro, há jovens, artistas. Com preços acessíveis para alugar casas, consegue-se uma cena cultural rica. E isso reflecte-se nos restaurantes em que estive: Belcanto é um fine-dining que está a fazer um excelente trabalho e há pessoas a voar para Lisboa para irem lá. Espero que o mesmo aconteça com o Leonardo Pereira. As pessoas começam a pensar nas raízes, a fazer algo de próprio, a abrir novos restaurantes que são diferentes do clássico francês.

O que é que realmente o entusiasma num restaurante?
Idealmente, quando vou a um restaurante, quero entrar noutra dimensão, algo que não conheço e onde nunca estive. É o mesmo que sinto quando vejo um filme que mudou a minha vida ou leio um livro e tenho aquela reacção: “Nunca tinha pensado nisto!” A primeira vez que fui ao Pierre Gagnaire [restaurante com o mesmo nome, em Paris] foi “uau”. A primeira vez que fui ao elBulli foi como entrar no Blue Velvet de David Lynch. A primeira vez que fui ao Noma, achei que estávamos a mudar a história da restauração, num sítio sem toalhas de mesa e onde não nos serviam foie-gras. É isso que procuro num restaurante, não apenas comer uma boa refeição. Aprecio mais uma coisa que não funcionou muito bem, mas que é uma ideia genial do que um prato executado na perfeição.

E o que o aborrece?
A rotina. Vivemos num mundo em que se vamos a um fine-dining em França ou Itália, em Portugal ou nos EUA, sabemos que vamos comer mais uma vez foie-gras, vieiras e terminar com pombo. Há um conformismo. É o dogma Michelin, que cria uma série de regras e se queremos fazer parte desse mundo, que está a chegar ao fim, ainda temos de seguir essas regras. Ainda há muito trabalho a fazer para tornar mais permeáveis estas paredes muito fechadas e deixar entrar ar fresco.

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