A Desterro da loiça?

Uma orientação da Procuradoria-Geral distrital do Porto estabelece que os procuradores deixam de poder pedir a absolvição num elenco de crimes especialmente graves, da dita “criminalidade de colarinho-branco”. O que vai acontecer?

No âmbito da minha profissão como docente universitário, conheci a Sra. Dra. Maria Raquel Desterro, na qualidade de Procuradora-Geral Distrital do Porto, por ela nutrindo grande estima pessoal e reconhecendo-lhe, pelo que conheço, capacidade de liderança. Tal não impede que me pronuncie sobre um documento que assinou e do qual não podia discordar mais. A crítica deve ser sempre dirigida aos argumentos e nunca à pessoa.

A “orientação” (não a encontrei no sítio institucional, pelo que não sei se terá sido este o instrumento jurídico usado), segundo as notícias, estabelece que os procuradores deixam de poder pedir a absolvição num elenco de crimes especialmente graves, da dita “criminalidade de colarinho-branco” e que tenham “repercussão social e mediática”. Nada podia ser mais errado no entendimento do que são as atribuições constitucionais do MP, bastando ler, de entre outros, o art. 219.º da Constituição, o art. 53.º do Código de Processo Penal e o Estatuto do MP, recentemente alterado. A congruência é total: os procuradores estão sujeitos aos deveres de legalidade, imparcialidade e objectividade, o que significa que devem carrear para os autos quer as provas que beneficiam, quer as que prejudicam o arguido.

O titular da acção penal, por imposição constitucional, não procura a verdade processual a todo o custo e, ao contrário do sistema anglo-americano, não temos um processo penal de partes, em que o district attorney tem de sustentar a acusação a todo o custo, se não chegar a acordo com os arguidos, o que acontece na maioria dos casos. Ele é um advogado (attorney), uma parte necessariamente parcial, mas tal nunca é assim nos MP de inspiração napoleónica como o nosso. Se assim fosse, então o MP não deveria ser uma magistratura, mas uma advocacia de Estado.

Felizmente, ainda há pouco tempo, num processo em que fui defensor, a sra. Procuradora, em face da exiguidade probatória, pediu a absolvição do arguido. E fez muito bem, pois interpreta correctamente as suas funções constitucionais e legais. Outros há que se assumem como verdadeiros justiceiros, empenhados na condenação custe o que custar, o que não podia ser pior serviço ao prestígio de que o MP deve gozar.

Esta magistratura é hierarquizada, mas tal não significa que a lei não preveja que, em face de ordens tidas por ilegais ou que violentem a consciência do procurador, ele não possa a elas desobedecer. Deve, mesmo, pois actuará a coberto do direito de resistência (art. 21.º da CRP). Entre autonomia técnica e hierarquia no MP, há brutais discussões que têm feito correr muita tinta e continuarão a fazer. Em especial quando altos responsáveis entenderem que a autonomia é uma mera flor à lapela e que o fato completo é a ordem hierárquica.

O MP prestigia-se pelo cumprimento da legalidade democrática e garantia do seu cumprimento, dado ser essa, para mim, a mais importante de entre as atribuições que a CRP lhe acomete. Claro que não desconheço a questão jurídica: tem sido entendimento dos tribunais superiores que, quando o MP pede a absolvição, não pode recorrer da decisão, por não ter interesse em agir. Discordo desta conclusão por variados motivos que aqui não cabem. Bastará dizer que entre o momento das alegações finais e a prolação da decisão final e seu estudo vai uma grande diferença. Após a produção de prova, o procurador pode entender que se produziu prova que não deixa dúvida razoável quanto à inocência do arguido ou, pelo menos, que resta um estado de dúvida insanável que, por obediência à presunção de inocência, deve ser resolvida a favor do arguido (in dubio pro reo). Aquilo que depois é vertido na decisão do juiz, mesmo que em sentido absolutório, pode padecer de erros e imprecisões de facto ou de Direito que urjam corrigir. O pedido de absolvição na fase das alegações finais não é um cheque em branco passado ao julgador.

Mais ainda: o que são processos de “relevante interesse social e mediático”? O MP vai passar a seguir-se por critérios de soundbytes da CMTV e quejandos? Vai ser uma espécie de termómetro do que parece ser um sentimento público de linchamento, tantas vezes manobrado por razões políticas, económicas e outras? E como se mede o critério? Vai-se criar uma espécie de “escandalómetro”?

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