A Europa já está a arder?

Não estamos confrontados apenas com a incerteza de um “Brexit”. Está a explodir-nos na cara uma outra ruptura: a da Catalunha.

Receio que estejamos a olhar com demasiada displicência e superficialidade o que se passa aqui ao lado, na Catalunha. É um desafio de enorme seriedade e de extremo perigo.

Esta não é a primeira crise de confrontações violentas nas ruas de Barcelona nos últimos anos. É muito perigoso. Pode contagiar. Os carros incendiados e os caixotes do lixo que ardem nas ruas de Barcelona não ardem só em Barcelona. Ardem na Europa. São capazes de ser mais um sinal de uma Europa em risco, uma Europa que já foi posta a arder.

Não estamos confrontados apenas com a incerteza de um “Brexit". Está a explodir-nos na cara uma outra ruptura: a da Catalunha. Uma, a britânica, rola nos termos do Direito estabelecido, mas ainda ninguém sabe se vai ser, quando vai ser e como vai ser. A outra, a catalã, está lançada de cabeça contra o Direito e ninguém sabe também se, quando e como vai ser.

Para os que pensem que esta crise é apenas espanhola, tirem daí o sentido. A crise é também europeia. Se a Catalunha se tornasse independente, sairia ipso facto da União Europeia. Há quem sustente o contrário e os independentistas não querem isso. Porém, é evidente que, se quisesse ser membro, não poderia fugir a longo e incerto processo de apreciação.

Na separação de uma parcela de um Estado-membro, o novo Estado não é membro automático da UE. Nenhum Estado é membro automático de qualquer união de Estados – pode querer, mas tem de ser aceite. Quanto aos tratados assinados pelo Estado de que se separou, o novo Estado teria de declarar se quer suceder, ou não, nos respectivos direitos e obrigações – é uma questão clássica e complexa do direito internacional. Aqui, seria problema novo, não regulado nos tratados europeus. Trata-se, aliás, de um problema que, obviamente, nunca será regulável pelos tratados europeus: nenhum Estado (ou união de Estados), no seu são juízo, é capaz de pré-regular os efeitos internacionais da secessão de uma parcela. Não escaparia certamente a novo processo de adesão ou um equivalente ad hoc imaginário (“desdobramento” da adesão de Espanha), implicando decisão por unanimidade de todos os Estados-membros, Espanha incluída.

No dia em que a Catalunha se separasse de Espanha, ficaria fora da UE e da aplicação dos seus tratados e legislação derivada, fosse por saída imediata ou por “suspensão”. Dizendo de outro modo: ficaria fora do direito da UE, ficaria fora das fronteiras da UE, ficaria fora da moeda euro, ficaria fora dos fundos comunitários e de todos os programas europeus, desde o Erasmus à cooperação científica e tecnológica, ficaria fora de qualquer representação nos órgãos da União e por aí adiante. Seria um passo ainda maior para o abismo profundo do caos. Os catalães passariam a necessitar de passaporte para ir a qualquer lugar da Europa, incluindo França e Espanha ali ao lado, o mesmo sucedendo a qualquer europeu, incluindo espanhol, que fosse visitar ou trabalhar na Catalunha. Se a União não fosse clara na aplicação deste regime – que tanta tinta tem feito correr quanto à Irlanda do Norte –, abriria crise gravíssima com Espanha, que a não merece e nada fez por ela. E uma eventual crise da UE com Espanha, a culminar o “procés”, seria dramática e de consequências imprevisíveis.

Que seria da União Europeia se a Catalunha se separasse de Espanha ao colo do resto da União, como parece andar Puigdemont? Por que não, então, a Padânia? Também não quer “sustentar” a Campânia, a Calábria e a Sicília, tal como a Catalunha não quer “sustentar” a Andaluzia. E se as agendas anti-imigrantes se apoderassem, a pouco e pouco, do mesmo separatismo populista que já arde em Barcelona? Se a Saxónia ou a Baviera, por exemplo, quisessem separar-se para trancar a imigração que a Alemanha não pare? Se, ilustrada pelo residente Puigdemont, a Flandres fizesse o mesmo, ali mesmo em cima da sede das instituições europeias? Parece caminho de loucura. É-o na verdade. Mas a loucura político-social costuma avançar depressa, mal se acende o rastilho e as circunstâncias estão de feição.

Sou insuspeito de castelhanismo ou de iberismo. Para mim, ibérico, nem o porco: é porco preto alentejano ou porco de montado. Não gosto de alguma soberba madrilista. Arrepia-me a judicialização da crise catalã e a dureza das penas aplicadas, muito embora não veja, honestamente, como pudesse ser diferente. A resposta judiciária disparou novo incêndio, mas não vejo outra resposta que fosse solução, nem como poderia fugir-se ao Estado de direito. Dói o sofrimento das pessoas nas ruas. Respeito a Espanha e a sua democracia. Respeito os catalães, o seu brio e a sua cultura própria. Mas sei que há dois lados, de que agora só nos mostram um.

“Nos quieren extranjerizar, poner una frontera donde no la había. Quieren poner fronteras donde no las había, por razones etnolingüísticas” – protestava, há dias, numa televisão, uma jovem mulher só, valente e emocionada, no meio do caos em Barcelona. “La gente tiene miedo, pero por lo bajini está harta.” Denunciava: “Si te identificas y estás contra esto, es tu muerte civil. No somos extranjeros en nuestra casa.” E insistia: “Hay que ser valientes y dar la cara. No podemos escondernos, y con nosotros toda España.” Foi a voz do outro lado, que é maioria na Catalunha.

A verdade é que foi a irresponsabilidade e o fanatismo temerário dos dirigentes separatistas que lançou a Catalunha neste sarilho, na violência e no caos, sem a menor legitimidade para o efeito e contra a vontade da maioria. Nas eleições catalãs de 2015, os independentistas obtiveram maioria parlamentar (72 deputados), mas receberam minoria de votos: a sua votação não foi além de 47,6% dos votantes, 35,7% dos eleitores. Foi com esta minoria que Puidgemont precipitou a Catalunha na aventura do referendo ilegal, desencadeando os efeitos fracturantes que se sucederam em cascata. Em nenhuma parte do mundo, senão por revolução não-democrática, uma tão minoritária base popular permitiria lançar a separação. Em nenhuma parte do mundo, aquele referendo revolucionário seria aceite como expressão democrática. A seguir, apesar da brutal dramatização provocada pelo referendo e pela repressão, as eleições catalãs de 2017 confirmaram a ilegitimidade. A maioria parlamentar dos independentistas ficou mais pequena (70 deputados) e confirmou-se a minoria dos seus votos: 47,3% dos votantes, 37,4% dos inscritos. 

Quando Pacheco Pereira escrevia, há dias, que “o que não vêem ou admitem é que possa haver uma vontade, uma determinação, uma razão pela independência da maioria dos catalães”, é preciso atentar precisamente que os números mostram que não é a maioria, mas uma minoria, que manifesta essa vontade. Não mentimos se dissermos que há dois milhões de catalães que querem a independência. São muitos, é verdade. Mas isso significa que, apesar de toda a pressão contínua, há três milhões e meio que a não querem. Ninguém pode ignorar e esmagar os direitos destes, como aquela mulher e milhões com ela que recusam uma fronteira que nunca existiu e protestam contra esta fractura.

Pelo contrário, todos temos de apelar aos dirigentes e partidos separatistas, se são democratas, para respeitarem o sentimento da maioria, pararem a violência nas ruas, regressarem à legalidade e respeitarem a maioria dos concidadãos, que não quer romper com a autonomia, a democracia e o Estado de direito de que todos gozam em Espanha. Além disso, se se sentem como europeus e querem a Europa democrática e em paz, devem interromper já esta obcecada viagem desenfreada contra a parede ou pelo abismo abaixo, com que fazem a União Europeia correr riscos tremendos. Se são democratas e europeus, está na hora de apagar o incêndio, fazer as pazes, repor a normalidade e a tranquilidade civil, retomar a legalidade da autonomia e o fio da ordem democrática.

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