Tunisinos escolhem novo Presidente e mergulham no caos político

O sistema político saído da revolução de 2011 foi posto em causa nas presidenciais e legislativas deste ano. O bom exemplo da Primavera Árabe prepara-se para um ajuste de desfecho incerto.

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Nabil Karoui, um dia depois de ter sido libertado, em campanha EPA/MOHAMED MESSARA
,Eleições presidenciais tunisinas de 2014
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As sondagens atribuem ligeira vantagem a Kaïs Saïed Reuters/Zoubeir Souissi

Os dois candidatos que disputam a segunda volta das presidenciais na Tunísia neste domingo apresentam-se como outsiders políticos e críticos dos actores que conduziram o país desde a revolução de 2011. As sondagens dão vantagem a Kaïs Saïed, um especialista em direito constitucional de perfil conservador, sem passado político. Porém, num contexto pródigo em reviravoltas, ninguém pode dar nada como garantido e a libertação, a quatro dias das eleições, do outro candidato, o magnata dos media Nabil Karoui, que estava em prisão preventiva desde Agosto, acusado de lavagem de dinheiro e fraude fiscal, é mais uma demonstração de que tudo pode acontecer no país da Revolução de Jasmim.

A candidatura de Karoui tinha apresentado um recurso junto do Tribunal Administrativo a pedir o adiamento das eleições, argumentando que o candidato não tinha as mesmas condições que o seu adversário. Ao sair da prisão de Mornaguia, próxima de Tunes, Karoui foi recebido por uma multidão de apoiantes. Os últimos dias de campanha foram aproveitados pelo empresário e proprietário do canal Nessma TV para participar em comícios, mas a sua prisão acabou por funcionar como trunfo eleitoral.

“Karoui e a sua campanha concentraram-se muito na ideia de que ele é um candidato que o establishment quer afastar”, disse ao PÚBLICO, por telefone, o analista do European Council on Foreign Relations (ECFR), Anthony Dworkin. Porém, nota o especialista em política do Norte de África, o empresário sempre foi muito associado ao partido Nidaa Tounès.

O académico Saïed é um outsider mais puro que o seu adversário. Tornou-se uma cara conhecida dos tunisinos quando passou a ser um convidado assíduo de programas televisivos durante o debate sobre a Constituição de 2011. Leu bem o descontentamento do eleitorado com a classe política e ancorou o seu discurso numa fórmula populista conservadora.

“Eu não vendo um programa, cabe aos cidadãos propô-lo, fazer as grandes escolhas para superar a miséria”, afirmou numa entrevista à AFP. Apesar de a política interna ser um domínio do Governo, Saïed propõe o regresso da pena de morte e opõe-se à igualdade entre homens e mulheres em questões sucessórias.

Revolução inacabada

​Aconteça o que acontecer na segunda volta das eleições presidenciais, os próximos tempos serão confusos e incertos na Tunísia. Em oito anos de desenvolvimento democrático, o país magrebino passou a sofrer dos males das democracias consolidadas. O processo de ajuste será longo e complexo.

Oito anos depois da revolução que derrubou o ditador Ben Ali, que morreu no mês passado, o sentimento dominante é de profundo descontentamento face à classe política. A passagem à segunda volta de dois candidatos que furam a lógica dos partidos que têm dominado a paisagem política atesta-o, bem como o resultado das eleições legislativas, há uma semana, que produziram um Parlamento muito fragmentado.

“Grande parte da sociedade sente que houve a revolução, mas as suas vidas não melhoraram nada”, observa Dworkin. A economia é hoje o tema dominante. O desemprego tem subido e está nos 15%, embora registe o dobro entre a população mais jovem, maioritária na pirâmide etária, e também nas regiões do interior. A democracia trouxe um crescimento económico anémico e uma inflação em torno dos 7%, encarecendo a generalidade dos produtos. Sectores vitais como o turismo também sofreram o impacto da insegurança causada pelo terrorismo.

Apesar de o gatilho da revolução de 2010-11 ter sido económico – a morte de um vendedor de frutas no interior do país pôs a nu as injustiças sociais na Tunísia –, os primeiros anos de democracia foram marcados por outras preocupações. As questões identitárias e a relação entre partidos islamistas e seculares foram o eixo sobre o qual a política nacional girou.

Foram essas tensões que representaram os primeiros obstáculos ao sistema democrático, superados em 2014 com a aliança entre o Ennahda, o partido islamista moderado, e o Nidaa Tounès, formação secular do antigo Presidente, Beji Caid Essebi, cuja morte em Julho antecipou as eleições. “Essa configuração acabou por revelar-se bastante estável, mas quebrou-se”, diz Dworkin.

Enquanto o Ennahda viu o seu candidato presidencial fora da segunda volta, confirmando uma erosão eleitoral que já vinha de eleições anteriores, o Nidaa Tounès desfez-se e é hoje uma constelação de pequenos partidos.

O correspondente do Le Monde em Tunes, Frédéric Bobin, olha para a evolução política da Tunísia – que continua a ser o único exemplo de uma transição democrática bem-sucedida no Norte de África – como reflexo do que tem acontecido às democracias consolidadas, marcadas também pela rejeição dos políticos tradicionais e pela emergência de novos actores. “Se a Tunísia é realmente democrática, por que milagre ou anomalia iria escapar às convulsões que atingem outras democracias?”, questionava.

É difícil discernir o que poderá ser criado para o futuro num contexto tão caótico. O especialista do ECFR não consegue ver, neste momento, nenhuma configuração política nova em gestação – de qualquer forma, mais do que o novo Presidente, será o desfecho das negociações para a formação do Governo que pode vir a revelar-se crucial. “Estamos num período de confusão e a pergunta é se algo irá sair disto que possa permitir a formação de um Governo, ou se a confusão irá levar a uma reformulação fundamental do sistema político.”

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