César pode ser Deus?

Se Netanyahu for obrigado a abandonar o poder, o que é tudo menos certo, deixa um país economicamente desenvolvido, mas também uma sociedade fraturada entre religiosos e laicos e assente numa falsa segurança.

Se o laico Benjamin Netanyahu conseguir formar governo, Israel ficará – mais ainda – refém dos partidos ultra-ortodoxos que são o principal ingrediente da aliança contranatura que está na base da sua coligação. Mesmo tendo fracassado pela segunda vez no seu principal objectivo, o ainda primeiro-ministro tentará tudo por tudo para continuar a ser o “rei” de Israel e escapar assim à justiça que o espera.

Mas este é talvez o fim da sua era. Apesar do apoio de que ainda goza, a sociedade israelita recusou dar-lhe carta-branca, incluindo a minoria árabe que, votando massivamente, contribuiu para o impasse. Se Netanyahu for obrigado a abandonar o poder, o que é tudo menos certo, deixa um país economicamente desenvolvido, com uma das maiores taxas de inovação do mundo, mas também uma sociedade fracturada entre religiosos e laicos, e assente numa falsa segurança baseada num status quo que mais tarde ou mais cedo deixará de o ser, pondo em causa o carácter judaico e democrático do Estado de Israel.

Em minha opinião, o mais grave problema da sociedade israelita é interno e está relacionado com a existência de partidos religiosos e com a promiscuidade entre religião e politica. É um problema que não é de agora. Apesar do direito israelita não ser um direito religioso e a Declaração de Independência assegurar a diversidade e a liberdade religiosa de todos os cidadãos, na tradição judaica nação e religião estão intimamente ligadas e o compromisso com o sector ortodoxo data do nascimento do Estado de Israel. Para David Ben-Gurion, tratava-se acima de tudo de evitar uma “guerra” entre laicos e ortodoxos, que aliás nunca deixou de existir. Todas as questões de ordem religiosa judaica são da responsabilidade do Grão-Rabinato, co-presidido por dois grão-rabinos, sefardita e asquenaze, ambos funcionários públicos e reconhecidos como “única autoridade em matéria de Lei Judaica”.

Esta “intimidade” entre a religião e o Estado com consequências no quotidiano dos cidadãos pode ser compreensível à luz da história do povo judeu e da vontade de preservar a sua identidade e unidade em Israel e na diáspora. Mas o judaísmo ortodoxo soube explorar até ao limite esta ambiguidade original, nomeadamente organizando-se em partidos cuja influência política sempre foi muito maior do que o seu peso eleitoral e através dos quais obtinha concessões exorbitantes, no campo religioso, social e educacional.

Apesar de tudo, até à “Guerra dos Seis Dias” e à Guerra do Yom Kipur, a relação manteve-se estável e o status quo equilibrado, sem que os partidos religiosos interferissem demasiado na vida política. Esta situação começou a mudar na década de 1970 quando ganha vigor uma mistura de integrismo religioso e de nacionalismo agressivo alimentada nas últimas décadas pelo recrudescimento religioso e fundamentalista, particularmente no mundo médio-oriental.

Esta questão tem-se agravado drasticamente devido ao sistema eleitoral israelita, directamente proporcional, que garante desde o seu início a representação de todos os grupos étnico-religiosos e partidos políticos. No entanto, essa representatividade quase absoluta que no início do Estado permitia uma melhor integração das componentes sociais é responsável pela fragmentação partidária do país, assim como mais tarde pela necessidade de negociação permanente e de compromissos políticos para governar.

A separação entre o Estado e a religião é uma condição indispensável a qualquer Estado democrático, à liberdade e ao pluralismo religioso. Mas não é apenas do ponto de vista individual ou colectivo dos cidadãos que a laicização do Estado é importante. É também do ponto de vista religioso: a promiscuidade com o poder corrompe a religião. Dir-se-á que mesmo nos países mais democráticos a religião nunca está muito longe do poder, seja por necessidade, ou por outros motivos. Em Israel, a proximidade do poder e a sua dependência tem levado à perversão da essência do judaísmo: arrogando-se o direito de decidir quem são os bons e os maus judeus, ou até quem é judeu ou quem não é; reclamando direitos que mais nenhum cidadão beneficia como o de não participar no exército ou o de ser subsidiado pelo Estado, ou seja, pelo conjunto da sociedade, para não trabalhar e poder apenas estudar; privilegiando a ritualização em detrimento da ética e decretando quais são as boas e más comunidades judaicas da diáspora, os partidos religiosos ultra-ortodoxos acabam por promover assim uma forma de racismo interno e externo que fractura e dilacera a sociedade israelita, mas também o próprio mundo judaico.

Pela sua própria história atribulada, não há no judaísmo nenhuma hierarquia religiosa, nem nenhum “Vaticano”. A liberdade de praticar ou não a religião ou a forma de a praticar é intrínseca à liberdade de consciência individual ou colectiva e um direito fundamental. A própria sociedade israelita espelha essa realidade multifacetada do ponto de vista religioso: judeus ultraortodoxos, ortodoxos, conservadores e reformistas de vários tipos, laicos ou ateus, para além evidentemente de árabes cristãos ou muçulmanos, drusos e beduínos… O sonho de todos os integrismos é o de uma sociedade totalmente regida pela lei divina. Mas César não é nem nunca será Deus, mesmo que se arrogue esse direito.

Aproxima-se a celebração do Ano Novo judaico, o Rosh Hashaná, que marcará a entrada no ano de 5780 do calendário judaico e durante a qual um dos elementos da ceia festiva é o mel para que o ano seja doce... E porque os bons votos nunca são demais, aproveito para desejar a todos, judeus e não-judeus, um feliz e doce ano novo!

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