O Parlamento erra ao condenar o museu Salazar

Numa democracia, o combate aos resquícios de uma ditadura como a do salazarismo não se faz com condenações proibicionistas; faz-se com o conhecimento da História. É também para isso que servem os museus.

O PCP não desaprendeu a velha arte de apagar os personagens ou temas incómodos da fotografia e ontem teve o condão de envolver na sua tradição os parceiros da esquerda, o Bloco e o PS, para condenarem o denominado museu de Salazar. Na agenda de uns e outros o que se destaca é a preocupação louvável de evitar a criação de “um local de romaria de antigos saudosistas da ditadura e de novos apoiantes de uma extrema-direita que se pretende assumir cada vez mais como ameaça à democracia”.

Mas, na sua essência, este gesto proibicionista vai muito para lá da higiene no combate à extrema-direita e acaba por dar lugar a um catecismo com o qual a esquerda pretende determinar os lugares do passado e o nível de conhecimento que dele podemos ter. Todos os espíritos que reclamem a liberdade de escolher o que devem ou não devem ver e de decidir pela sua cabeça o que pensar do que vêem só podem olhar com preocupação para esta atitude do Parlamento.

Como já aqui escrevemos, havia um perigo a merecer reparo e a justificar o protesto contra o museu ou centro interpretativo lançado pela Câmara de Santa Comba Dão: o de querer criar ali um lugar simbólico onde o pouco que resta do salazarismo se pudesse reflectir e reestabelecer. Mas se esse receio recomenda um combate ao projecto em abstracto, exige também que se analisem eventuais medidas cautelares para o evitar.

Ora, se a moção do PCP tem receios de uma iniciativa “desprovida de elementos de denúncia real da natureza fascista”, os responsáveis do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra afirmam que o projecto museológico não deixará de retratar o Estado Novo e o ditador em todas as suas dimensões. Se a memória for respeitada e se a verdade histórica cultivada, o centro terá de falar do Tarrafal, das perseguições políticas, da corrupção material e moral do regime, da guerra colonial e de todo o acervo de atrocidades cultivado no salazarismo.

Que o Parlamento exigisse esse equilíbrio e protestasse até o conseguir, todos perceberíamos. Mas, depois de haver garantias de historiadores insuspeitos de que o museu, ou centro, não será uma hagiografia ao ditador, a condenação votada pela esquerda deixa de o ter como objecto e passa a dirigir-se ao conhecimento público de uma parte de Portugal do século XX.

Numa democracia, o combate aos resquícios de uma ditadura como a do salazarismo não se faz com condenações proibicionistas; faz-se com o conhecimento da História. É também para isso que servem os museus.

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