A história póstuma de um antigo primeiro-ministro com uma conta secreta na Suíça

Raymond Barre, antigo chefe de Governo francês e ex-vice da Comissão Europeia, escondeu 6,7 milhões de euros no Crédit Suisse. Autoridades descobriram após a morte do ex-governante. França ficou a saber hoje.

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Raymond Barre serviu o Presidente Giscard d'Estaing no Governo francês de 1976 a 1981 Robert Pratta/Reuters

Reputado economista, professor universitário na Sorbonne, duas vezes ministro, do Comércio e das Finanças, primeiro-ministro, vice-presidente da Comissão Europeia, intelectual reconhecido, conhecido pelo rigor, candidato à Presidência da República, deputado e autarca no fim da carreira política. Raymond Barre foi tudo isto ao serviço da V República em França. Morreu em 2007 e, 12 anos depois, o prestígio granjeado em vida fica seriamente abalado com uma revelação póstuma.

As autoridades francesas descobriram que o antigo chefe de Governo (entre 1976 e 1981) escondeu uma fortuna na Suíça, praça que foi durante décadas um “cofre-forte” do segredo bancário mundial, hoje escancarado perante a pressão internacional para que a administração helvética coopere a nível fiscal com outros países.

Foi já anos após a morte de Barre que as autoridades fiscais e judiciais ficaram a saber que o ex-primeiro-ministro fora titular de uma conta secreta no Crédit Suisse, em Basileia, com 11 milhões de francos suíços (6,7 milhões de euros em Agosto de 2007).

O caso de Raymond Barre — um dia aclamado “um dos melhores economistas de França” pelo Presidente de centro-direita Valéry Giscard d'Estaing, que o chamou para o Governo — era desconhecido até hoje; até o jornal Le Canard Enchaîné revelar na edição desta segunda-feira o que se passou depois da morte do governante.

O fio da história começa aqui: em 2013, uma fonte anónima fez chegar às autoridades francesas a cópia de uma página intranet de um ficheiro do Crédit Suisse que identificava Barre como cliente da instituição. O documento indicava a existência de uma conta que se perceberia mais tarde nunca ter sido declarada ao fisco francês: a conta número 0060-26026-45.

A partir do momento em que as autoridades francesas ficaram com a informação em mãos, os herdeiros passaram a estar na mira da direcção nacional de verificação das situações fiscais.

O património da viúva, Eve Barre, e dos filhos, Nicolas e Olivier, foi passado a pente fino; os herdeiros foram chamados a justificar a origem dos rendimentos e do património; e com o desenrolar das diligências, as autoridades acabariam por abrir, em 2016, um inquérito por suspeitas de branqueamento de capitais. O alvo: os herdeiros.

Eve Barre morreu em 2017. Nicolas e Olivier mandatam o seu advogado para regularizar a situação fiscal e tentar manter o caso longe dos holofotes, escreve o Canard Enchaîné. Terão entretanto pago perto de um milhão de euros (entre correcções fiscais, coimas e juros).

Longevidade e integridade

O caso, avalia Nuno Sampayo Ribeiro, advogado especialista em direito fiscal internacional, mostra que “não há longevidade sem integridade” e comprova que “é real a existência de uma nova atitude social face ao não cumprimento dos deveres fiscais e que da crise de 2007-2008 emergiu uma nova cidadania económico-financeira centrada na sustentabilidade financeira e na aspiração social da interligação entre liderança, responsabilidade e integridade.”

É um novo episódio de dinheiro não declarado na Suíça, depois do caso do ministro do Orçamento francês Jérôme Cahuzac em 2013, quando François Hollande estava na Presidência.

A reputação académica de Raymond Barre como professor e autor de livros na área das ciências económicas valeram-lhe o epíteto de “um dos melhores economistas de França”. Foi em 1976 que Valéry Giscard d'Estaing, então Presidente da República centrista, lhe fez o elogio. Da vida política marcada por uma política de austeridade, sobressai agora uma outra frase dita por Barre nesse ano. O Canard Enchaîné foi recuperá-la e explica-se porquê: “O primeiro passo [pela justiça social] passa por acabar com a fraude fiscal, que criou privilégios injustos a que os franceses são cada vez mais sensíveis”.

“Ironicamente, Raymond Barre deixa-nos uma ‘lição póstuma’ de economia política que julgo de utilíssimo efeito pedagógico para a afirmação do que venho designando por economia reputacional, bem como da era da transparência fiscal”, analisa Sampayo Ribeiro, vendo nesta “lição póstuma” uma dupla utilidade. Não só a de colocar a tónica na importância “das políticas públicas de luta contra a evasão fiscal e os fluxos financeiros ilícitos”. Mas “utilíssima” também porque adverte “os mercados financeiros sobre a importância da cultura organizacional e do controlo interno de uma instituição financeira para reforçar a sua licença social como intermediário de confiança, e porque sinaliza ao decisor a renovada actualidade do risco reputacional, em especial no arbítrio das situações: não é proibido, posso fazer?”.

O passado presente

Os danos reputacionais estendem-se agora aos herdeiros. Contactado por telefone pelo Canard Enchaîné, o filho Nicolas Barre afirmou: “Não tenho nada a dizer, nenhuma declaração a fazer”. Remeteu as explicações para o seu advogado, Jean-Louis Renaud, a quem coube dizer que “está tudo regularizado”. Com uma observação: “O passado é o passado”.

O passado tornado presente leva Sampayo Ribeiro a lembrar os danos “muito severos” que as revelações causam na reputação póstuma do ex-primeiro-ministro. O fiscalista chama ainda a atenção para o momento em que estes factos vêm a público, no dia seguinte ao da indicação de Christine Lagarde para a presidência do Banco Central Europeu (BCE).

“Enquanto ministra das Finanças, [a actual directora-geral do FMI] obteve a lista de cidadãos com activos não declarados na Suíça, que ficou conhecida por ‘lista Lagarde’ e que França partilhou com outros países a partir de 2010, mas que a imprensa nacional destacou que só chegou a Portugal cinco anos depois, isto é, em 2015, sem justificação conhecida”, recorda o advogado.

Raymond Barre foi primeiro-ministro durante cinco anos e chegaria ainda a ser candidato presidencial em 1988. Antes, tinha sido vice-presidente da Comissão das Comunidades (Comissão Europeia) de 1967 a 1973, nas presidências de Jean Rey, Franco Malfatti e Sicco Mansholt. No fim da carreira política viria ainda a ser presidente da Câmara de Lyon (de 1995 a 2001).

Em 1998, recebeu o doutoramento honoris causa pela Universidade de Lisboa. Morreu em Paris em 2007, aos 83 anos.

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