Basta? O quê?

Há os que no discurso apelam a “menos Estado”, esse odioso cobrador de impostos. São todos contra o Estado da redistribuição.

Agora que já não há campanha eleitoral e há resultados, mas os outdoors ainda perduram com as suas mensagens, vale a pena pensar na leitura que nós e os outros, os que votaram e não votaram, vamos recebendo consciente ou inconscientemente ao passarmos por eles ou ao ouvirmos vozes de rua. Nomeadamente a daqueles que, sendo perdedores, não desistirão e têm objectivos.

Dizem alguns especialistas que os partidos da extrema-direita europeia atingiram o seu “tecto de vidro” e que não vão crescer mais, pelo menos eleitoralmente. Mas já chegam para oprimir os povos da Polónia e da Hungria. Os votantes em Portugal, dada a abstenção, não são uma amostra significativa, visto que há grupos sociais que não votaram mas votarão nas legislativas. São uma tendência, pelos vistos boa para quem defende o papel de redistribuição do Estado. No entanto, não deixa de ser preocupante quando se olha ao microscópio e se vê onde houve votação no Basta com os seus apoios monárquicos e “cristãos”.

A votação mais importante foi nos concelhos longe do poder central – Barrancos, Vila Viçosa, Monforte. E na “cintura industrial” – Odivelas, Vila Franca de Xira, Loures. Foi assim que começou a Frente Nacional de Le Pen em França, agora Rassemblement National. Apelou e apela aos que se sentem abandonados pelo poder, aos idosos e distantes, a uma classe ex-operária, mal informada, de revolta primária e cheia de razão perante as desigualdades. É altura de se olhar para essa mancha que é o resultado último da política chamada neo-liberal iniciada em 1979/80 por Reagan e Thatcher, e seguida por uma “social-democracia” que se foi moldando à política da “não-alternativa”. É também a altura da esquerda que não é populista ousar discutir os caminhos da unidade e praticá-la, para além do protesto que está na sua genealogia.

E é por isso que devemos observar o que é que basta. Para além dos outdoors vermelhos (quem é que os paga?), há outros. Há os que usam o apelo ao manifesto dos “contribuintes”, unidos como outrora o foram os trabalhadores. Há os que no discurso apelam a “menos Estado”, esse odioso cobrador de impostos. O público visado é diverso, mas o objectivo é o mesmo. São todos contra o Estado da redistribuição. Uns visam o “povo”, outros a classe média, outros a população da linha Estoril/Cascais. Perante estes outdoors apetece-me sempre perguntar se os autores e, sobretudo, os seguidores têm alguém de família a fazer tratamento de oncologia. É natural que sim. Se assim acontece, essa pessoa ou essas pessoas estão a consumir mensal e gratuitamente muitos milhares de euros de medicamentos – inovações no tratamento oncológico. Não é água que lhes corre nas veias, é o resultado do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Quando extremo o caso até à oncologia, é exactamente porque faz parte dos nossos medos. Em Portugal e em todos os países desenvolvidos morre-se de cancro ou de doenças cardiovasculares. E é nisso que pensamos quando, como seres vivos e pensantes que somos, temos medo da finitude. Convém lembrar, e é necessário repeti-lo e ser pedagógico, que nestas duas áreas Portugal tem uma prática ao mais alto nível no seu SNS. E convém lembrá-lo quando se repetem manchetes de jornais, com personalidades e responsáveis de ordens a denegrir o SNS, de tal modo que alarmam e atemorizam quem procura solução. E a solução fora do SNS, quando existe, é muito cara e não é melhor.

Ora, o SNS também não vive da água, vive dos impostos e os directos são cobrados só a uma parte da população. Mas os tratamentos são iguais para todos. É esta a filosofia da redistribuição, que devia ser explicada pedagogicamente através dos meios usados pela publicidade, sem o discurso pesado do financiês ou do economicês. Quando se lê a manchete dos jornais dizendo que um quinto dos doentes com cancro ultrapassam os tempos de espera de cirurgia, isto assusta. Mas se formos ver qual é a espera excessiva média, é de 15 dias para os “muito prioritários” e de 60 dias para os “normais”. Terrível para quem espera, eu sei. Mas quanto tempo esperariam nos EUA, mesmo que pagassem um daqueles seguros de topo? Talvez esperassem para o resto da vida, que seria curta. E quanto esperariam nas PPP, mesmo que fossem enfiados numa sala de refeitório ou numa casa de banho? Essas sacudiriam a água do capote se o caso fosse mais complicado e ficasse fora do contrato. E iriam para os hospitais de gestão pública.

No entanto, é altura para discutirmos o que fazer com o dinheiro que a indiscutível competência de Centeno conseguiu e vai conseguir se os juros se mantiverem a este nível. Quanto ao SNS haverá que planear e organizar a médio e a longo prazo, com recuperação de equipamentos, estabilização e reconhecimento de carreiras, utilização da capacidade existente. E, o maior dos estímulos, a exclusividade profissional, devidamente remunerada, que terá resultados como tem sido provado nacional e internacionalmente. A prova está também nas Unidades de Saúde Familiar que terão que aumentar em número e que retirarão urgências hospitalares. E deste modo e explicitamente ir contra o apoio ao “desenvolvimento do sector privado da saúde (...) em concorrência com o sector público” e o crescente aumento de celebração de “acordos com entidades privadas para a prestação de cuidados” como rezam as Bases I, II e IV que foram aprovadas pelo CDS e o PSD em 1990 e que ainda vigoram.

Este programa avançado na saúde tem que entrar em discussão com as Finanças? Tem. As Finanças só sabem de Finanças, não conhecem as necessidades dos sectores, caso a caso. Igual discussão em relação à aplicação da Lei de Bases da Habitação, às Leis do Trabalho e, dentro destas últimas, às práticas dos privados, que nas grandes empresas mantêm salários baixos e exaustão de horários. Como disse Bernard Kouchner, fundador dos Médicos Sem Fronteiras, “as diferenças entre ricos e pobres tornaram-se insuportáveis”.

As frases extremas do Basta e dos que falam em nome dos contribuintes são a forma mais descarada de expressar os programas do PSD e do CDS – “menos Estado”. Qual Estado? O da redistribuição. Não é o da segurança. Esta é a discussão clara que tem que ser feita. Todos nós procuramos pagar menos impostos, também é preciso dizer isso sinceramente. As pequenas empresas muitas vezes vêem-se aflitas para os pagar. Esta contradição está na sociedade. Os tais 22 mil milhões que foram para os bancos e que beneficiaram indirectamente empresários sentimos que foram tirados a quem paga impostos. Mas eu e a maioria da população portuguesa, que somos como a menina da tabacaria de Fernando Pessoa e não percebemos nada de finanças, precisamos que nos expliquem em linguagem que se perceba, sem palavras como “imparidades”. 

Sendo que, quando um jornalista usa indevidamente Os Vampiros do Zeca Afonso para falar dos impostos que nos cobram, usa mal. Os “vampiros” de que falava o Zeca, os que “comem tudo e não deixam nada”, são os de cima, são os que fogem com o dinheiro para as offshores, são os que estabelecem sedes em países onde pagam menos, são os que usam consultadorias fiscais. São os que discutem o salário mínimo apesar de serem orgulhosamente “os mais ricos de Portugal” e terem CEO’s a ganharem fortunas. São os que não querem pagar impostos e com eles sustentarem a redistribuição. São talvez os que pagaram os outdoors.

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