Constâncio e a cultura do lava-culpas

Sejam quais forem as novas ou velhas explicações de Constâncio, já toda a gente percebeu o óbvio: sem a sua autorização suprema ou o seu beneplácito régio, essa operação nunca poderia ter sido concretizada.

Vítor Constâncio vai ser ouvido novamente no Parlamento sobre as suas responsabilidades, enquanto governador do Banco de Portugal, na autorização do empréstimo de 350 milhões de euros concedido pela CGD a Joe Berardo para comprar acções do BCP (e que lhe permitiriam disputar uma posição de controlo naquele banco em tempos de grande tumulto e conflitualidade no sistema financeiro). Mas sejam quais forem as novas ou velhas explicações de Constâncio, já toda a gente percebeu o óbvio: sem a sua autorização suprema ou o seu beneplácito régio, essa operação nunca poderia ter sido concretizada, o que implica o favorecimento de uma das partes na guerra dos protagonismos (mais ou menos suicidários) da banca portuguesa. Ora isto é simplesmente inconcebível e imperdoável por parte de uma entidade com as responsabilidades decisivas do supervisor da actividade bancária.

Claro que há sempre uma alternativa explicativa a esta conclusão e que está de resto amplamente consagrada nos actos e costumes de quem é suposto mandar no país – nomeadamente em sectores tão cruciais como a banca: não sabia, não me lembro, não fui informado (nem era suposto sê-lo), não tenho culpa, os culpados são (sempre os) outros. Ou seja: vivemos numa cultura generalizada da irresponsabilidade. Uma cultura que sustenta largamente a forma como tem sido gerida a actividade bancária, pelo menos aquela que deu origem às maiores crises, dívidas, perdas e falências que afectaram alguns dos principais bancos e que tiveram de ser suportadas, directa ou indirectamente, pelos contribuintes (afectando gravemente os recursos do Estado para intervir em áreas fundamentais para o funcionamento do país, o investimento público e o bem-estar dos cidadãos).

O caso Constâncio, apesar da sua importância e significado excepcionais, é apenas um entre largas dezenas de casos de responsáveis pela actividade bancária que se distinguiram como expoentes dessa cultura generalizada da irresponsabilidade e do lava-culpas, funcionando dentro de um sistema de cumplicidades ou promiscuidades inconfessáveis com o poder político e o poder económico e financeiro. Ora, se pensarmos até que ponto a impunidade tem protegido essa elite dirigente bancária – com raras e espectaculares excepções a braços com a Justiça –, encontraremos a chave para explicar muitos dos bloqueios e estrangulamentos de que sofre o país. Quando o poder do dinheiro é açambarcado por especuladores sem escrúpulos, aventureiros inconscientes e banqueiros sedentos dos seus privilégios senhoriais, isso não pode deixar de se reflectir nos constrangimentos orçamentais e nas famosas “cativações” a que o Governo recorre para cumprir as regras de Bruxelas.

É tudo isso que torna comportamentos como o de Vítor Constâncio especialmente revoltantes. Sobretudo se tivermos em conta que Constâncio não é um funcionário ou gestor anónimo, mas alguém que teve altas responsabilidades políticas como secretário-geral do PS, foi governador do Banco de Portugal e, depois, vice-governador do Banco Central Europeu. Dele seria legítimo esperar um comportamento de integridade exemplar e não as desculpas sonsas e esfarrapadas ou os inverosímeis e grotescos lapsos de memória a que tem recorrido para lavar as culpas que lhe cabem.

Claro que é justo recordar que a crise bancária portuguesa foi explosivamente potenciada pela crise global pós-2008 e que as culpas estão muito longe de ser exclusivamente nacionais. Mas também é certo que sem essas culpas nacionais a recuperação do país não teria sido tão penosa e com custos tão injustos – até pelas desigualdades que potenciou – como aquela que hoje enfrentamos.

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