Lisboa: há um abecedário feminista para ser lido nas ruas dos Anjos

Pensados no Brasil e colados nas ruas de Lisboa, os cartazes de Katherine querem simplificar os jargões feministas. Mas sem “cagação de regra”. Objectivo? Criar pontos de partida.

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Estão 26 cartazes distribuídos por Anjos, Lisboa.

Para cada letra do abecedário há um cartaz. A nova língua que se aprende nas ruas da cidade funciona como uma introdução às expressões e jargões do quotidiano feminista. Feminicídio, misoginia, género, queer e xoxota são algumas das 26 palavras explicadas, de forma simples e ilustrada, nas ruas dos Anjos, onde ocorre as actividades do Festival Feminista de Lisboa, durante todos os fins-de-semana de Maio.

O projecto é de Katherine Lahude, gaúcha, 27 anos, mas as palavras que agora interpelam quem passa nas ruas do bairro mais multicultural de Lisboa foram pensadas por mais de cem jovens brasileiras. Foi em 2016, quando estudava na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Brasil, que o projecto surgiu, numa cadeira de Tipografia da licenciatura. Ao mesmo tempo, Katherine ia-se descobrindo no admirável mundo feminista, junto de um colectivo de jovens da faculdade.

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O cartaz da letra P está na rua Regueirão Anjos Katherine Lahude

Este colectivo era um espaço onde se denunciava casos de abuso e assédio, mas também servia de fórum onde as jovens partilhavam as suas inquietações e vontades. Quando Katherine teve a ideia para o projecto, ainda numa fase embrionária, pediu ajuda às jovens para completar as palavras que iriam ficar associadas às letras do abecedário. O trabalho ficou finalizado, com o nome “Alfabeto Empoderador”, mas nunca saiu do online, ficando publicado apenas no Tumblr.

Há seis meses, quando aterrou em Lisboa para estudar na Faculdade de Belas Artes, ouviu falar, por coincidência, do Festival Feminista de Lisboa. Era a oportunidade de levar à avante uma vontade antiga. “Queria há muito tempo que o projecto fosse para a rua, que ocupasse os espaços. Este não é um projecto de galeria. Queria tornar o conteúdo acessível num espaço onde toda a gente o pode ver e consumir, querendo ou não”, explica. 

O “Alfabeto Empoderador” foi seleccionado para a programação do festival, entre as 200 propostas de participantes que responderam à open call desta segunda edição. “Nós fizemos um mapa onde os cartazes estão. As pessoas podem fazer uma rota pela cidade e ver todos”, conta.

Um cartaz com várias vozes

Além de desconstruírem termos que parecem complicados à primeira vista — como a palavra queer —, os cartazes assumem um feminismo interseccional, feito de várias experiências e vozes, dando espaço a outras minorias. Agora numa condição de imigrante, esta pluralidade tornou-se cada vez mais evidente para a artista. “É um privilégio eu estar aqui. Não saí fugida do Brasil, vim estudar. Mas estar num país em que tu és a estrangeira traz mais essa carga e, em todos os aspectos da minha vida, tento trazer essa perspectiva de considerar não só a minha realidade enquanto mulher, mas de outras mulheres”, conta.

Há outras palavras, mais simples e comuns, como o “não”, que ganham uma nova roupagem nos cartazes. “Não quer dizer não: não. Meu corpo não é público. Meu corpo não é seu. Caminhar por um espaço público não torna meu corpo público”, lê-se no cartaz colado na rua Regueirão dos Anjos. Mas as definições não são absolutas, nem fechadas. “Como se diz no Brasil, isto não é cagação de regra. Eu não quero ter uma voz que impõe uma definição, uma explicação. É um ponto de partida para se pesquisar mais”, defende. 

Apesar de ter colado os cartazes esta semana, algumas letras já foram rasgadas. “Tudo bem”, diz Katherine. “É o risco. Nem toda a gente vai aceitar e entender”, conta. “Para mim já é importante os cartazes terem ido para a rua. Pelo momento em que se vive no Brasil, é muito simbólico estar a fazer isto aqui.”

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Pelo menos dois cartazes foram rasgados. Katherine Lahude

Design, uma ferramenta feminista

Doravante, Katherine não vai parar. Encara o design, área que estuda há vários anos, como a ferramenta activista que lhe permite comunicar os seus ideais com o mundo. “Há muito a questão do design critico, mas é o crítico pelo crítico. Não tem muita acção. Eu acredito no design social e activo”, explica.

Como designer, Katherine diz que não se consegue ver “noutro papel”. Enquanto feminista, assegura que a sua “obrigação” é fazer a diferença. “Estando aqui numa condição de privilegio, enquanto estudante, torna-se ainda mais urgente que eu pense, olhe para o Brasil, e consiga mudar coisas dentro dos meus limites. O facto de ter colocado o projecto do alfabeto na rua foi motivado por isso. Em Portugal, o que é que eu consigo fazer? Fico feliz por isto, mas triste ao mesmo tempo, porque são tempos sombrios no meu país.”

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