Feminismo à la carte

O feminismo é uma luta digna, mas trata-se do activismo social com o maior número de exemplos de exageros, incoerências e comportamentos fúteis.

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Aj Colores/Unsplash

Todas as lutas e activismos sociais nascem com o objectivo de extinção a uma opressão que, em caso de sucesso no seu derrube, naturalmente será seguida pelo florescimento de algo com cor e luz. É a permuta do mal pelo bem, do errado pelo certo. A luta feminista, à época em que nasce, é um exemplo perfeito de como certos activismos sociais são importantes para a mudança no rumo da história para melhor. As suffragettes foram as protagonistas do tal exemplo da permuta do mal e errado (a ausência do poder político nas mulheres) para o bem e certo.

Contudo, nenhum activismo – a menos que tenha uma espécie de comité central tentacular com controlo transversal sobre todos os seus membros – consegue resistir imaculadamente a uma metamorfose natural trazida pelo avançar do tempo. Infelizmente, por vezes, esta tal metamorfose traz significativas mazelas e características lesivas a algo que era organicamente bom e intelectualmente saudável. Resulta, na maior parte das vezes, em exageros e incoerências nas acções que teoricamente estão sob égide destes activismos; certamente, fruto de uma má interpretação ou ausência de leitura da cartilha do movimento. E o feminismo, só não é excepção, como é o maior exemplo da presente exposição.

Trata-se, actualmente, do activismo social com o maior número de exemplos de exageros, incoerências e comportamentos fúteis por parte de quem tão cega e erradamente o hasteia. Confesso, todavia, não saber exactamente por que razão ficou tão despido da honra que outrora exibiu. Arriscaria que assim tão pobremente se metamorfoseou devido ao facto de reivindicar, genericamente, a luta pelos direitos de todas as mulheres e poder, por isso, abranger matemática e literalmente todas – o que eventualmente terá criado uma divergência de pensamento na própria estrutura interna. Quase todas as mulheres, quando questionadas, se dizem feministas. Como explicam Baumeister e Leary, não há ser humano que não necessite do sentimento de pertença a um grupo ou a um acontecimento: por isso, uma das razões para o sucesso do feminismo é o sentimento de pertença ao movimento em si – que se traduzirá na possibilidade de afirmação de participação na luta activa pelos direitos que amanhã as suas filhas terão. Através desta lógica, talvez seja perceptível entender o porquê de o feminismo estar tanto em voga. É algo bem parecido, com identidade, e de atracção genérica a todo um espectro de gente (maioritariamente feminina).

Não pretendo ser mal interpretado: o feminismo é – na sua génese – uma luta digna. Mulheres a serem valorizadas e respeitadas como os homens é tão obviamente correcto que peca ainda ter de ser a ordem do dia. O problema brota quando estas legítimas lutas se tornam completamente ocas e descaracterizadas — não por culpa do movimento no sentido estrito mas pelos seus missionários. Quantos são os casos de feministas que ouvem críticas de alguém que se julga reaccionário ao movimento e acabam concordando absolutamente com estes?

Constata-se, então, que o problema não está no feminismo per si mas em quem não sabe ser feminista. Mais, o cerne do problema reside, principalmente, naquelas pessoas – maioritariamente mulheres – que utilizam o movimento à la carte. Isto é, quando lhes apetece e sem seguir uma directriz coerente. Ao fazê-lo, sabotam toda a honra que poderá haver neste e infertilizam terreno de luta social que poderia ser adubado convenientemente por outrem. Exemplos desta incoerência são facílimos de encontrar: o caso mais paradigmático a utilizar tem a ver com discotecas e mulheres.

Ora, é possível, à terça-feira, uma simpática feminista insurgir-se radicalmente no Instagram contra a vilipendiosa objectificação sexual da mulher e, chegando sexta-feira, se esquecer de tudo isso para promover publicamente eventos em que o produto é claramente a mulher e toda a sua objectificação sexual envolvente. Estamos, então, perante aquilo que designo por feminismo à la carte, ou, se preferirem, feminismo self-service. Dá-lhes jeito os ideais feministas aqui e acolá, mas ainda não lhes convém muito vestir o movimento integralmente. Serão feministas em part-time? Uns dias fica giro promover a libertação feminina da mão do homem, outro dia dá-se-lhes uma efémera amnésia e promovem eventos nocturnos nos quais a mulher é, indirectamente, o produto. Esta pessoa está, na verdade, a perpetuar a objectificação a que faz frente às terças-feiras. A matemática é simples e dolorosa — quando as mulheres não pagam na noite significa que elas próprias são o produto. Entre pagar-se igualmente aos homens ou aproveitar-se um bocadinho do velho tio chato heteropatriarcal que lhes dá entrada grátis há que se optar por uma.

Pede-se coerência entre os actos e a ideologia social que se embandeira! Fazer o contrário não dá apenas má imagem ao movimento ou à pessoa em si. É que o feminismo perde efectivamente músculo e legitimidade intelectual com a reprodução constante e reiterada de ocorrências como estas – de incoerência – e de overdose da sua luta. Deve-se, dentro do próprio movimento, combater isto. Doutrinar. Ensinar a agir. Desradicalizar-se o discurso e sofisticar os meios para atingir um fim, que – compreendendo a acepção da palavra como igualdade de direitos entre homens e mulheres – faz mais que sentido ser atingido o quanto antes.

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