Mais de 300 crianças esperavam adopção já depois de juiz a ter decidido

Dados são de 2017, quando 268 crianças foram adoptadas, mais 27 do que no ano anterior. Houve mais projectos de adopção interrompidos por falta de um compromisso pleno dos candidatos a pais adoptivos.

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Daniel Rocha

Em 2017, mais crianças foram integradas numa família de adopção, relativamente ao ano anterior: foram adoptadas 268, ou seja, mais 27 do que as 241 crianças e jovens que tinham sido integrados em famílias em 2016. Uma família pode adoptar mais do que uma criança para irmãos não ficarem separados.

A evolução seria positiva não fosse a realidade reflectida no relatório do Conselho Nacional para a Adopção (CNA) relativo a 2017. O universo de crianças e jovens à espera de uma família adoptiva, já depois de um juiz ter decretado a sua condição de adoptabilidade e corte com os pais biológicos, continua a ser superior ao conjunto das crianças adoptadas. Em 2017, estavam 318 crianças e jovens a aguardar uma família adoptiva sem perspectiva nenhuma de algum dia regressar à família biológica.

“Apesar dos resultados consideráveis já alcançados, a actividade das equipas de adopção por todo o país e do próprio CNA continua a ser desafiante”, conclui o relatório a esse propósito. Além disso, 20 crianças viram os seus projectos de adopção interrompidos, ainda de acordo com o relatório tornado público na página do Instituto da Segurança Social nesta segunda-feira. 

Perante o universo alargado de menores à espera de uma família, aquilo que mais reservas coloca às psicólogas especializadas em adopção entrevistadas pelo PÚBLICO é o peso dado pelo sistema de protecção à aposta de um regresso da criança à família de origem. “Está a levar-se a aposta da família biológica longe de mais?”, questiona Fernanda Salvaterra, psicóloga do Desenvolvimento e professora universitária a exercer actualmente funções no Instituto de Apoio à Criança (IAC).

Para Fernanda Salvaterra, que coordenou até 2012, e durante vários anos, o serviço de adopções do centro distrital de Lisboa do Instituto da Segurança Social, “quando o projecto de vida é definido já muito tarde é muito difícil de concretizar, quer do ponto de vista da criança que já não está disponível para aceitar outros pais, quer do ponto de vista dos candidatos porque as crianças mais crescidas não correspondem ao desejo da maioria”, explica. 

"Medida de último recurso"

“A adopção enquanto medida de protecção [de crianças em perigo] tem sido muito pouco cuidada. É sempre tida como a medida de último recurso, no sentido em que é a mais extrema. Implica a actuação do tribunal”, considera por seu lado Maria Barbosa-Ducharne, professora na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. “A medida de adopção devia ser o primeiro recurso para muitas crianças no sistema de protecção, para as quais não é viável um projecto de reunificação familiar ou quando estes não são trabalhados ou agilizados” da melhor forma.

Investigadora e autora de vários artigos académicos sobre o tema, Maria Barbosa-Ducharne não deixa de apontar uma nota positiva. “Haver um relatório é muito bom”, diz, sobretudo porque os dados da adopção de 2014 e de 2015 “não foram tornados públicos”. Antes disso, um levantamento das situações era publicado. A partir de 2016, passou de novo a ser através do CNA, que junta representantes dos institutos de Segurança Social do continente, dos Açores e da Madeira, e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. O organismo com abrangência nacional, recebe as propostas de integração de crianças em famílias, que valida ou não. Este é o segundo relatório publicado pelo CNA, desde que o organismo foi constituído em 2015. 

Para Fernanda Salvaterra, o que mais chama a atenção neste documento é o facto de mais crianças em 2017 terem visto o seu projecto de adopção interrompido na fase de pré-adopção. “Na fase de pré-adopção, a criança já vai para casa da família, é entregue à família e tem mesmo a vivência de estar em família como filho.” Quando não corre bem, tem de sair outra vez. Em 2017, aconteceu com 15 crianças. Tinha acontecido com cinco em 2016.

O CNA esclarece que “em apenas duas situações a interrupção foi motivada por uma resistência recíproca entre crianças e candidatos” quando conclui que “de facto, na maior parte das vezes, o fundamento das interrupções é atribuído à dificuldade ou incapacidade de vinculação por parte dos candidatos”. 

“É grave”, diz Fernanda Salvaterra, como “é muito grave” o sucedido em 2016 (como consta no relatório Caracterização Anual da Situação de Acolhimento de 2017) quando 48 crianças voltaram para os centros de acolhimento já depois de uma adopção decretada, ou seja, quando já estavam na família, numa fase definitiva, adoptando o nome dos pais adoptivos. O CNA intervém até a adopção ser decretada em tribunal, depois da fase de transição, da fase de pré-adopção, dos pedidos de relatórios, e da sentença judicial de adopção em tribunal, quando as crianças mudam de nome.

A pré-adopção segue-se à fase de transição, dura sensivelmente seis meses e antecede a decisão definitiva do juiz. Durante a fase de transição, quando começam as visitas e a primeira interacção entre a criança e os candidatos à adopção (mas ainda não há vivência na família), cinco crianças em 2017 viram o seu projecto interrompido, o mesmo acontecendo com 14 em 2016.

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Dificuldades e desafios

“Algumas vezes os candidatos (isoladamente ou em conjunto) mostraram dificuldade em lidar com os desafios e exigências do processo, denotando falta de conhecimento ou um desfasamento entre as suas expectativas, os seus recursos internos e o real perfil das crianças”, lê-se no documento sobre os motivos para essa interrupção. 

Este desfasamento “chegou a gerar castigos desproporcionados ou reacções de violência” em casos muito excepcionais. O processo foi rompido também em situações em que os elementos da família adoptante “revelaram indecisão, insegurança, angústia ou o receio de contactos com a família biológica”. Também houve casos em “que se verificou a indisponibilidade dos candidatos para o projecto de adopção por estarem, por exemplo, demasiado centrados nas suas próprias necessidades mais do que nas das crianças, ou formularem outros projectos incompatíveis, nomeadamente de natureza profissional ou pessoal, com a fase do processo que estavam a vivenciar.”

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