A metáfora de Notre-Dame

Se a reconstrução de Notre-Dame é uma oportunidade para refazer a unidade da França, é também um risco para Macron.

Macron fala amanhã aos franceses. Devia ter falado a 15 de Abril. Estava tudo pronto. A comunicação ia ser emitida às 20 horas. Preparada no maior secretismo, era suposta ser a resposta à crise social e política em que França está mergulhada. Seria um momento decisivo, um ponto de viragem, uma refundação da República. Que deveria mudar o curso das coisas.

Mas, horas antes, o que, afinal, mudou o curso das coisas foi o grande incêndio da catedral de Notre-Dame. Macron suspendeu a comunicação e compareceu no local, ainda em chamas, como que a encarnar a tragédia nacional. Com voz trémula, anunciou a reconstrução e apelou aos franceses para transformarem a catástrofe numa oportunidade. Isto é, para se unirem para reconstruir o futuro. Para restaurar a unidade de uma França dividida, desde o movimento dos coletes amarelos. Dividida ente o centro e as periferias, entre os ganhadores e os perdedores da globalização, ou, na linguagem básica dos populistas, entre “as elites” e o “povo. A reconstrução da catedral não era mais que a metáfora da reconstrução do país. A mensagem era clara: nesse grande projecto nacional, reconstrução e união eram duas faces da mesma moeda. O caso não era para menos: as chamas consumiam, aos olhos do mundo, um símbolo nacional. 

No imaginário político francês, Notre-Dame é o epicentro do país. Da sua geografia e da sua História. O adro da catedral é como o centro geográfico-administrativo, o ponto zero donde irradiam as estradas e se calcula a distância da capital à mais recôndita fronteira. E a catedral, ela própria, é o coração de quase mil anos de História. Notre-Dame é antes de mais um património religioso, o centro do catolicismo francês desde a época medieval. Obra-prima do gótico, desafia as leis da gravidade, rasga o céu e eleva-se elegante e vertical à procura da luz. Mas essa elevação ao céu não é só a aproximação religiosa a Deus, é também a afirmação política da superioridade da monarquia francesa.

Era em Notre-Dame que os monarcas rezavam e celebravam as vitórias. A ligação do trono e do altar deu à catedral, desde cedo, uma dimensão política. Mas não foi só a monarquia. Napoleão fez-se coroar imperador em Notre-Dame. E a República laica não prescindiu da catedral. Foram os sinos de Notre-Dame que repicaram, em Novembro de 1918, a celebrar a vitória na Grande Guerra. E foi lá que, em Agosto de 1944, o General De Gaulle, os líderes da resistência, da França livre e os aliados, celebraram a libertação. Foi em Notre-Dame que se ouviu o Te Deum da vitória e o órgão da catedral tocou A Marselhesa. Nesse momento, o símbolo religioso do catolicismo francês tornou-se o símbolo laico da identidade nacional. Um lugar da memória, diria Pierre Nora.

Mas Notre-Dame estava já muito para além do imaginário político e muito para além da própria França. Entrara no imaginário literário e cinematográfico. Desde Victor Hugo, Notre-Dame é inseparável do amor impossível de Quasimodo e Esmeralda, que a Disney transportou para o cinema de animação e fez entrar no imaginário infantil e na cultura de massas. Quem não se comoveu com O Corcunda de Notre-Dame? A classificação da Unesco e o turismo fizeram o resto: um património mundial. Mas engana-se quem pensa que Notre-Dame foi sempre um símbolo consensual. Não foi. A revolução francesa descristianizou e fechou o templo. Considerava-o um lugar da monarquia e da igreja. Não era lá que devia celebrar-se a nação. Da Comuna de Paris conseguiu sair ilesa. Mas não foi consensual. Não foi e não é. E é aí que se joga, agora, o futuro.

Se a reconstrução de Notre-Dame é uma oportunidade para refazer a unidade da França, é também um risco para Macron. A oposição política e os partidos tradicionais parecem ter-lhe dado uma trégua. Mas os coletes amarelos ignoraram o apelo e desafiaram o Presidente. Voltaram à rua pelo 23.º sábado consecutivo e queriam manifestar-se frente à catedral. A UNEF, associação de estudantes radicais, manifestou já o seu desprezo, “politicamente correcto”, pelo património francês que classifica de património dos brancos. Macron fala, finalmente, amanhã. Diz-se que vai anunciar redução de impostos, extinção da ENA e descentralização. Mas mais do que quaisquer medidas políticas, o futuro vai jogar-se onde ele próprio o colocou: no plano simbólico. Na capacidade de mobilizar, de unir e de integrar os franceses na narrativa nacional. Nos tempos que correm não estou muito optimista.

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