Notre-Dame: a Europa viu arder a catedral que fundou o gótico

Um violento incêndio destruiu esta segunda-feira boa parte da catedral de Notre Dame de Paris, símbolo da arquitectura gótica. Não há memória recente de uma perda patrimonial desta importância na Europa.

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Uma Europa estupefacta viu esta segunda-feira pelas televisões um fogo incontrolável devastar a catedral de Notre-Dame de Paris, um dos monumentos mais famosos do mundo, visitado anualmente por cerca de 13 milhões de pessoas, um dos primeiros e mais notáveis exemplos da arquitectura gótica. O fogo irrompeu ao final da tarde e, pela meia-noite, com o fogo ainda activo, já tinha ruído o telhado, e a imponente agulha da catedral, com as suas centenas de toneladas de pedra e ferro, afundara-se nas chamas. 

Os bombeiros admitem que o incêndio terá sido acidental e que poderá estar “potencialmente ligado” às obras de restauro, que ali decorriam desde 2017. Com o intenso trânsito da capital francesa a dificultar o acesso à catedral, os 400 bombeiros mobilizados esperavam continuar a combater o fogo durante a noite de segunda-feira. As últimas informações indicavam que a prioridade era evitar danos no trabalho arquitectónico à retaguarda do monumento.

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Sem que alguém possa neste momento prever qual será, no final, a verdadeira extensão dos danos, as edições online dos jornais franceses já titulavam na segunda-feira ao final da noite que a estrutura e as torres se iriam salvar. E terá sido também possível preservar o essencial dos tesouros móveis que se encontravam no interior da catedral. Segundo um padre terá assegurado no local ao repórter do Libération, “todas as obras de arte foram salvas e o tesouro da catedral está intacto”.

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Na capa que o jornal preparou para chegar esta terça-feira às bancas, a imagem da catedral arder é acompanhada por apenas duas palavras: “Notre Drame”. Mas o drama podia ter sido bem maior, tendo em conta que se trata de um monumento que recebe cerca de 30 mil pessoas por dia. Há notícias de um bombeiro ferido com gravidade, mas tanto quanto se sabe o fogo não terá feito outras vítimas.

“É uma coisa difícil de acreditar”, reagiu Pedro Redol, conservador do mosteiro da Batalha e professor na Universidade Nova. E di-lo em sentido literal: “Um edifício como este tem de ter um sistema de segurança contra incêndios, nomeadamente avisadores que accionam meios de protecção automáticos, que por sua vez molham a estrutura de madeira e impedem a combustão”, observa.

E Notre-Dame tem muitas estruturas de madeiras por cima das abóbadas de pedra, lembra Pedro Redol, que receia que o calor possa também ter danificado alguns dos notáveis vitrais da catedral e chama a atenção para “os grandes danos que a queda da agulha provavelmente provocou”. O pináculo agora destruído fora um dos muitos elementos reconstituídos nas grandes obras de restauro empreendidas no século XIX sob a direcção do arquitecto Viollet-le-Duc.

A construção original da catedral estendeu-se de 1163 a 1345. “É a primeira grande realização da arquitectura gótica, que depois se vai difundir pela Europa”, diz Redol. Um movimento que nasceu ali mesmo, na Île de France, correspondente à região de Paris, e cujo primeiro exemplo é a Abadia de Saint-Denis. Uma origem tão reconhecida na época que, acrescenta este especialista, “como não existia o nome arquitectura gótica, as pessoas diziam que era ‘ao modo de França’”. E conclui: “É este este valor histórico e simbólico que torna tudo mais chocante – estou incrédulo”.

Também o historiador de arte Paulo Fernandes sublinha que a catedral de Notre Dame “é o monumento fundador do estilo gótico e o mais icónico de um tempo de afirmação da Europa”, e que por isso mesmo foi tantas vezes retratado, “de Victor Hugo à Disney”.

Enquanto os principais líderes europeus enviavam mensagens de solidariedade e Donald Trump sugeria, num tweet, que usassem aviões – possibilidade que as autoridades francesas se apressaram a descartar, explicando que era demasiado arriscado e podia fazer desabar todo o edifício –, o presidente Emmanuel Macron começou por usar também o Twitter para se solidarizar com a angústia dos franceses: “Como todos os meus compatriotas, estou triste por ver uma parte de nós a arder”.

Previa-se que Macron dirigisse na segunda-feira à noite um discurso ao país, centrado no movimento de contestação dos chamados “coletes amarelos”, mas decidiu adiá-lo e ir acompanhar no local a luta contra as chamas.

João Pinharanda, adido cultural de Portugal em França, antecipa o que será o próximo debate e advinha uma “discussão sobre o estilo que a reconstrução da catedral do século XII deverá adoptar”. “Vai usar-se esta infeliz oportunidade para actualizar o edifício e adoptar uma linguagem contemporânea? Essa estratégia num contexto religioso tem sempre algumas dificuldades.”

O especialista em arte ressalva que aquilo que hoje conhecemos da catedral Notre-Dame é na realidade um conjunto já de alterações que foram acontecendo ao longo do tempo. A mais significante data ao século XIX, pelos arquitectos Eugene Viollet-le-Duc e Jean-Baptiste-Antoine Lassus. “Em meados do século XIX, a técnica e política de reconstrução do monumento destruído era de reconstruir à luz da época actual”.

“Gostando os franceses de grandes discussões, vai daqui nascer uma grande polémica”, afirma João Pinharanda. “França tem um orgulho imenso no seu património. Temos o exemplo de catedrais na Alemanha que foram reconstruídas sem olhar para o projecto original. Não sei o que acontecerá em Paris.”

“Eu acredito que a História tem de ser vivida em camadas. Uma igreja do século XIII ardia e no século XIV ninguém ia reconstruir como ela era e é por isso que vemos monumentos com estilos diferentes.” No entanto, o conselheiro cultural da embaixada de Portugal acredita que em França o cenário seja influenciado pelo “poder público e pelo povo” e que por isso “provavelmente seja reconstruída como o original”. Ainda assim, “será muito diferente da catedral descrita por Victor Hugo”, autor da obra Nossa Senhora de Paris (1831).

Hermano Sanches Ruivo, vereador português da Câmara de Paris, acredita que, independentemente dos estragos provocados pelo incêndio, a Catedral será reerguida das cinzas: “É óbvio que vamos reconstruir: um monumento desta importância tem de ser recuperado”, disse ao PÚBLICO. O vereador rejeitou ainda a possibilidade de fogo posto: “As consequências são dramáticas e queremos acreditar que tenha sido um acidente nas obras”, afirmou. 

E apesar de ser de esperar, como notou Pedro Redol, que monumentos desta importância disponham de sofisticados sistemas de protecção contra incêndios, a verdade é que os acidentes acontecem mesmo, como o demonstram os recentes exemplos do Museu da Língua Portuguesa em S. Paulo, que ardeu em 2015, e do Museu Nacional do Rio de Janeiro, devastado por um incêndio em 2018. Na Europa, e nas ultimas décadas, os exemplos mais comparáveis talvez sejam o violento incêndio que destruiu parte da catedral de York, no Reino Unido, em 1984, atribuído a um relâmpago, e o que deflagrou em 1992 no castelo de Windsor, uma das residências oficiais de Isabel II, quando um candeeiro foi acidentalmente encostado a um cortinado. 

Emmanuel Macron assegurou já que a catedral irá ser recuperada, e o primeiro donativo chegou no próprio dia da tragédia, com a família do empresário e coleccionador de arte François Pinault a anunciar que doará cem milhões de euros para a reconstrução de Notre-Dame.

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