Reconstrução da catedral de Notre-Dame irá abrir “uma grande polémica”

O adido cultural da embaixada de Portugal em Paris antecipa um debate intenso sobre o processo de reconstrução da catedral parcialmente destruída pelo incêndio desta segunda-feira.

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Um incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris, causou nesta segunda-feira elevados danos no monumento. A origem do sinistro ainda não é conhecida, mas poderá estar relacionada com o decurso de obras de restauro naquele que é um dos símbolos da capital francesa. O grau de destruição ainda não foi totalmente apurado, mas a catedral que Victor Hugo descreveu no seu romance e que inspirou o imaginário sobre a Paris medieval não deverá voltar a erguer-se como os planos originais. É o que antecipa João Pinharanda, adido cultural de Portugal em França. 

“Desde que estou cá há três anos que a catedral Notre-Dame está sempre em obras. A única polémica que poderia haver é técnica”, começa por contar João Pinharanda, em conversa telefónica com o PÚBLICO.

“A catedral é, ou era, coberta de madeira. Já o telhado não era feito de telha, mas de chumbo. O chumbo quando pega fogo aquece e derrete, caindo”, descreve o historiador de arte. “Isso não melhorou a situação. Os vitrais também estarão provavelmente destruídos. É difícil que os vidros e o chumbo tenham resistido às altas temperaturas do incêndio.”

O conselheiro cultural da embaixada sublinha a rapidez com que o incêndio deflagrou e consumiu a catedral, mas também com que o espaço foi evacuado — uma gestão rápida que permitiu retirar todos os turistas do monumento "mais visitado na Europa” e evitar o registo de vítimas: “Houve uma grande eficácia das autoridades na reacção.” E criticou a sugestão do Presidente dos Estados Unidos, que defendeu o recurso a aviões de combate a incêndios. “Se tivessem lá colocado ‘tanques de água voadores’ como [Donald] Trump sugeriu, provavelmente toda a estrutura de Notre-Dame teria caído”, explica o especialista.

Além dos estragos materiais, “a desgraça é também simbólica”, considera João Pinharanda​. “Emmanuel Macron tinha já gravado a sua intervenção sobre os Coletes Amarelos. Nas próximas horas toda a gente iria estar a discutir isso. E foi tudo adiado para data incerta”, assinala.

Já o futuro da Catedral de Notre-Dame trará controvérsia. João Pinharanda antecipa o que será o próximo debate e advinha uma “discussão sobre o estilo que a reconstrução da catedral do século XII deverá adoptar”. “Vai usar-se esta infeliz oportunidade para actualizar o edifício e adoptar uma linguagem contemporânea? Essa estratégia num contexto religioso tem sempre algumas dificuldades.”

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A catedral de Notre-Dame antes do incêndio EUTERS/Benoit Tessier

O curador e historiador de arte ressalva que aquilo que hoje conhecemos da catedral Notre-Dame é na realidade um conjunto de várias intervenções e alterações que foram acontecendo ao longo do tempo. A mais significante data ao século XIX, pelos arquitectos Eugene Viollet-le-Duc e Jean-Baptiste-Antoine Lassus. “Em meados do século XIX, a técnica e política de reconstrução do monumento destruído era de reconstruir à luz da época actual”, consequências dos efeitos de destruição da Revolução Francesa.

“Gostando os franceses de grandes discussões, vai daqui nascer uma grande polémica”, acredita o adido cultural. “França tem um orgulho imenso no seu património. Temos o exemplo de catedrais na Alemanha que foram reconstruídas sem olhar para o projecto original. Não sei como será o caso francês.”

“Eu acredito que a História tem de ser vivida em camadas. Quando ardia uma igreja do século XIII no século XIV, ninguém ia reconstruir a igreja como ela era. E é por isso que vemos monumentos com estilos diferentes”, disse ao PÚBLICO.

O conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Paris admite que em França o cenário possa ser influenciado pelo “poder público e pelo povo”, e que por isso “provavelmente seja reconstruída como o original”. Ainda assim, “será muito diferente da catedral descrita por Victor Hugo, autor da obra Notre-Dame de Paris (1831).

Foi justamente o sucesso do livro que aumentou o número de visitas do monumento e o tornou internacionalmente conhecido, impulsionando a sua recuperação, apenas amplificada com a adaptação para o filme de animação da Disney, O Corcunda de Notre-Dame (1996), aponta o especialista.

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