O autocarro é da câmara – não é da CGTP

A sentença é cristalina e está muito bem fundamentada: o Estado não se confunde com os partidos e o património camarário não existe para fazer fretes a centrais sindicais.

É um prazer ler sentenças ponderadas, bem argumentadas e eticamente inatacáveis. Ontem li uma dessas, do juiz Filipe Cunha e Costa, que deveria ser distribuída na Assembleia da República, para que toda a gente percebesse, de uma vez por todas — em especial o PCP —, que o Estado não se confunde com os partidos, e que o património camarário não existe para fazer fretes a centrais sindicais.

Vale a pena recordar a história: em 2016, um grupo de cidadãos processou as câmaras de Montemor-o-Novo, Évora e Vila Viçosa (todas CDU) por terem cedido autocarros com o exclusivo objectivo de levar funcionários camarários à manifestação da CGTP que teve lugar em frente ao Parlamento, a 10 de Novembro de 2015. Nesse dia, a central sindical comunista decidiu celebrar efusivamente a queda do segundo governo de Pedro Passos Coelho, e a comunicação social deu conta de que em Montemor-o-Novo o transporte dos alunos foi suspenso por falta de autocarros, ocupados que estavam a levar funcionários da câmara à manif. O mesmo aconteceu em Évora e em Vila Viçosa.

Os três casos tiveram destinos diversos nos tribunais portugueses. O de Évora foi arquivado. Em Montemor-o-Novo a autarquia foi absolvida. E agora, em Vila Viçosa, o juiz não fez por menos: condenou o presidente e o vice-presidente da câmara a uma multa relativamente modesta, mas com consequente perda de mandato, pela prática do crime de peculato de uso por titular de cargo público. O PCP já veio protestar; os autarcas já anunciaram que iriam recorrer; mas a sentença é cristalina e está muito bem fundamentada, demonstrando o total desrespeito do presidente da Câmara de Vila Viçosa pela separação entre aquilo que são os interesses do município e aquilo que são os interesses do partido e da sua central sindical.

A lista de ilegalidades cometida é vasta: a câmara ofereceu o dia aos funcionários para se irem manifestar, o que não está abrangido pelas leis do trabalho; disponibilizou um autocarro sem pedir quaisquer contrapartidas, suportando todos os custos inerentes (motorista, combustível, portagens); o autocarro seguiu para Lisboa apenas com um terço da lotação, quando as regras camarárias impõem que ele não possa ser utilizado a menos de dois terços; o sindicato que pediu o transporte não tem sede no concelho de Vila Viçosa (o autocarro está exclusivamente vocacionado para servir associações do município); e o veículo da câmara foi disponibilizado para uma iniciativa político-partidária, que não está abrangida no regulamento de cedência (que se limita, e bem, a actividades com fins “educacionais, humanitários e de assistência, culturais, sociais, desportivos e recreativos”).

Como assinala o juiz, a câmara ofereceu tudo isto “à margem de qualquer enquadramento legal” e motivada “por razões político-ideológicas”, pois o objectivo da viagem era claro. Ele nunca foi escondido pelo sindicato, que disse que a concentração visava “a rejeição do programa de governo, e a consequente demissão de um elenco sem credibilidade nem legitimidade democrática”; e foi assumido de forma aberta em reunião camarária, onde ficou escrito que a deslocação se prendia “com o derrube de um governo que, durante quatro anos, foi extremamente nefasto para a política nacional e para os trabalhadores”. Como opinião, ela é com certeza legítima. Como justificação para enviar 19 funcionários para a Rua de São Bento à custa dos munícipes de Vila Viçosa, é curto – e, como se viu, criminoso.

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